Regulação da internet: o que você ver e ouve não é via internet (leia e entenda)

# internet plataformas

O professor Marcus Dantas, Professor Titular da Escola de Comunicação da UFRJ, apresentou seu trabalho em evento que se realiza na cidade de Goiânia. Imperdível a leitura pelos melhores leitores do blog.

Saiba quem controla, ainda à margem da Lei e da soberania dos países, a internet (ou melhor as plataformas).

Imperdível!

A Quarta Frota, agora em bits, é onipresente

Pronunciamento na seção de Abertura do VIII Fórum da Internet no Brasil

Universidade Federal de Goiás, 05/11/2018

A infraestrutura da internet é, hoje em dia, acessada e usada por talvez 4 bilhões de pessoas em todo o mundo e por mais de 120 milhões no Brasil. Como nos mostra o “TIC Domicílios” que está sendo lançado aqui, 67% da população brasileira com mais de 10 anos, ou 2 em cada 3 brasileiros e brasileiras têm acesso à infraestrutura da internet. No Brasil, a infraestrutura de radiodifusão é também acessada e usada por mais de 150 milhões de pessoas e a de telecomunicações, por um número similar. O “TIC Domicílios” (relatório de estudo feito pelo CGI.br e divulgado na abertura do VIII Fórum) confirma que a infraestrutura de acesso à internet tornou-se quase tão ubíqua e conspícua quanto as ruas de qualquer cidade. Assim como precisamos trafegar pelas ruas para realizar boa parte das nossas tarefas cotidianas, sejam profissionais, sejam lúdicas, também precisamos trafegar pela internet para realizar, cada vez mais, tarefas que, até recentemente, nos exigia sair à rua.

Mas não realizamos as tarefas nas ruas, exatamente. Atendemos às nossas necessidades e desejos, nas lojas, nos restaurantes, nos escritórios de trabalho, ou nos movendo de ônibus, metrô, bicicletas, automóveis particulares, claro que, em muitos casos, também a pé. Em toda essa vivência, seguimos regras. Mesmo quando estamos a pé, andamos, por exemplo, na calçada, obedecemos aos sinais de trânsito, às faixas de pedestres. Para dirigir nossos automóveis, precisamos de uma licença especial, ou melhor, duas: a carteira de motorista e a licença do veículo. As lojas, os escritórios, tudo obedece a regras, sejam municipais, estaduais ou federais. Até para instalar uma banca de jornaleiro na esquina ou uma barraca de bebidas na praia, precisa-se de algum alvará da prefeitura. Imagine-se o que seria da vida numa cidade, se não existisse um mínimo de ordenamento normativo, ordenamento este oriundo de governos, assembléias e congressos democraticamente eleitos, ou de outros poderes públicos estabelecidos por normas constitucionais ou infraconstitucionais.

A infraestrutura da internet nasceu à margem das leis, fomentada pelo Pentágono, construída por um conjunto de cientistas e engenheiros positivistas mas movidos por seus ideais liberais próprios da cultura acadêmica anglo-saxã. Houve mesmo um tempo em que se imaginou poder se manter essa infraestrutura à margem ou fora do mundo dos negócios. E também à margem ou fora da sociedade dos homens e mulheres reais, com suas culturas e subculturas, seus conceitos e preconceitos, seus desejos e frustrações, suas crenças, afetos e também… ódios.

A infraestrutura evoluiu, cresceu, penetrou definitivamente em todos os poros da sociedade, e foi invadida e tomada pelos negócios. Como as ruas de uma cidade, acessada e trafegada por homens e mulheres de todas as índoles, a internet já não pode mais seguir evoluindo como se estivesse acima ou à margem do mundo real. Como as ruas de uma cidade, estamos falando de lojas, empresas, serviços de transporte, pedestres… É da organização do acesso e uso dos espaços dessa cidade chamada internet que precisamos tratar. E já não podemos ignorar que a ocupação dessa cidade está mais se parecendo, infelizmente – se me permitem a metáfora de um habitante do Rio de Janeiro –, com aquela dos bairros-condomínios fechados da Barra da Tijuca, do que com a que ainda podemos vivenciar nas ruas de acesso aberto e livre da Zona Sul ou dos subúrbios tipicamente cariocas do outrora alegre, festivo, progressista e liberal Rio de Janeiro.

A maior parte da infraestrutura da internet foi tomada e ocupada, sem que disso nos déssemos conta, pelo Google, não nos esquecendo de seu Android e seu YouTube; pelo Facebook, não nos esquecendo de seu WhatsApp e Instagram; e por outras praças de mercado gigantescas como a Amazon, a AirBnb etc. A rigor, o que é acessado via smartphone, não é a internet, mas o Android. Ouve-se música, não pela via internet, mas cada vez mais via Skype. Assim como filmes, pelo Netflix ou vídeos pelos YouTube.

Os críticos dos monopólios das comunicações, costumam acusar a Rede Globo e outros poucos grupos de mídia, de terem ocupado quase toda a infraestrutura de radiodifusão do país. É verdade. Mas fizeram-no por anuência e concessão do Estado e ao Estado, ao Congresso que não elabora as leis necessárias, ao Executivo que sequer faz cumprir as leis existentes, aos Governos que elegemos ou não elegemos, são dirigidas as críticas, e sobre eles são feitas as pressões políticas próprias de uma sociedade democrática. Na internet, essa ocupação se deu devido a total ausência de Estado e de políticas públicas: foi acontecendo assim como algo tão natural quanto o Pão de Açúcar (o morro símbolo do Rio).

Não, não foi natural. Ela aconteceu num contexto de políticas ultra-liberais e fomentadas pelos interesses geopolíticos dos Estados Unidos, que além de grandes vantagens econômicas, dela retira meios poderosos de vigilância global, inclusive de influência nas políticas internas e decisões de outros povos, como acaba de acontecer no Brasil. Mas se achamos “natural” – na verdade é um fenômeno social, político e econômico – regular as empresas que operam sobre as infraestruturas de radiodifusão ou de telecomunicações, precisamos também começar a achar “natural” que empresas que operam sobre a infraestrutura da internet venham igualmente a ser submetidas a regras públicas.

Não nos é mais possível, a esta altura, ignorarmos os graves impactos políticos e culturais desse ainda novo meio de comunicação social na nossa concepção de democracia, espaço público, até mesmo de cotidiano e convivência civilizada. A experiência que tivemos nas últimas eleições, somada à experiência que estamos testemunhando em outras democracias liberais, inclusive nos Estados Unidos e Reino Unido, nos convoca a repensar seriamente um paradigma político e cultural que se consolidou desde tempos pioneiros mas que, hoje, está sendo contestado – desafiado mesmo, eu diria – pela realidade concreta da sociedade concreta.

Não podemos continuar achando “natural” a disseminação de ódio, mentiras, ameaças violentas, discursos misóginos e racistas, outros comportamentos ética e moralmente condenáveis através, não da internet, mas através dessas plataformas. O que vimos acontecer no Brasil durante as últimas eleições não foi “natural”, sequer espontâneo, foi orquestrado a partir de agentes externos, e todos aqui sabemos disso. Os porta-aviões de aço e petróleo da Quarta Frota do passado, foram substituídos pelas plataformas de bits do presente…

Estamos observando que crescem no mundo, ou parte dele, as iniciativas para impor controle sobre essas plataformas. Nem falemos da China que, conforme já perceberam alguns analistas, vem construindo uma segunda internet na bacia do Pacífico. O Regulamento Europeu de Proteção de Dados Pessoais, além de pesadas multas impostas pela União Européia por práticas monopolistas a algumas dessas plataformas, são indícios claros da crescente intervenção do Estado democrático nessa camada superior da internet. É um movimento sem volta. Qualquer um que conheça a história social e econômica dos meios de comunicação sabe que todas essas tecnologias nasceram à margem de qualquer regulação pública até por serem, obviamente, totalmente inéditas no momento em que nasceram. E todas, a começar pela telegrafia no século XIX, depois a telefonia e a radiodifusão, tiveram que ser publicamente reguladas devido às suas grandes consequências disruptivas no mundo dos negócios, na vida cotidiana das pessoas e também nas relações soberanas entre os estados nacionais.

Concluindo. Precisamos clarear o foco da discussão. Não estamos mais falando realmente de “internet”, mas de um punhado de poderosas plataformas comercial-financeiras que operam sobre (sublinhe-se “sobre”) a internet. Assim como, se falamos de “Globo” ou “SBT”, não falamos necessariamente de “radiodifusão”, ou se falamos de “Oi” ou “Telefônica” não falamos necessariamente de “telecomunicações”, se falamos de “Facebook”, “Google”, “Netflix”, “Uber”, estamos falando de grandes corporações empresariais que prestam serviços através da tecnologia da internet e, através desses serviços, afetam os negócios e a vida cotidiana, tanto positivamente quanto também negativamente.Precisamos começar a pensar seriamente em regular as grandes plataformas comerciais da internet. Ou tanto a democracia, quanto a soberania nacional, sucumbirão a elas.

Obrigado!

Marcos Dantas

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