O Acre e a psique do seringal

Desde os primórdios dos seringais acreanos, o autoritarismo estava presente

psique

Kairo Araújo Um dia desses, logo após o segundo turno da eleição majoritária no Brasil, conversava com o meu amigo Francisco sobre como o Acre, segundo estado mais pobre do país, deu uma das mais expressivas quantidades de votos proporcionais do país a Bolsonaro. Como pode um estado que deixou de ser o terceiro para se tornar o segundo mais pobre durante o governo do atual mandatário ser tão cego e apoiar um homem que flerta diuturnamente com o totalitarismo?

No bojo dessa pergunta, ele me falou da psique do seringal, que ainda é muito viva nas mentes e corações de muitos acreanos. O seringal, de onde vieram muitos dos nossos avós e ate pais, era um lugar com suas virtudes e defeitos. Mas lá, imperava relações autoritárias e verticalizadas, do estilo “manda quem pode, obedece quem tem juízo.” No nosso linguajar, ainda há expressões “como jogar no mato”, quando estamos na verdade nos referindo a jogar algo no lixo. O jogar no mato vem da memória do seringal, naquele tempo não havia coleta de entulhos, sujeiras etc., era natural jogar literalmente em um mato distante ou então queimar, costumes que infelizmente perduram em muitos de nós até os dias atuais.

 

Não havia instituições a que recorrer, não havia polícia ou autoridade qualquer que se fizesse presente nos rincões do Acre(…)

Desde os primórdios dos seringais acreanos, o autoritarismo estava presente. A relação entre seringalista (“dono do seringal”) e do seringueiro (trabalhador geralmente oriundo do nordeste) era totalmente assimétrica, não havia pagamento em dinheiro pelo trabalho extenuante de coleta de látex da seringueira, o barracão onde o trabalhador obtinha os produtos para sua subsistência era superfaturadíssimo, proibidos de plantar o pagamento era feito através das mercadorias com sobrepreço, causando uma divida que por muitas vezes era impagável e nesta história, era pouca ou nula a margem para negociação. Não havia instituições a que recorrer, não havia polícia ou autoridade qualquer que se fizesse presente nos rincões do Acre, a única força presente era o seringalista ou alguém que defendia o seu interesse de “patrão”.

Podemos pensar: nesta estrutura cruel e injusta por que os seringueiros não se revoltaram e se libertaram da opressão dos seringalistas? A força repressora estava totalmente alinhada com o seringalista, inicialmente os seringueiros que começaram a chegar aqui não eram nativos, não conheciam a região, não possuíam armas e nem mesmo o seringalista morava aqui, geralmente era de Manaus. Ir até Manaus reivindicar algo naquele tempo (final do século XIX e começo do XX) beirava o impossível para um seringueiro, ele teria que ter um barco e suplementos para uma viagem longa e dispendiosa até a capital do Amazonas, além, da inexistência de rodovias pavimentadas.

Sagazmente, temendo insatisfações e “corpo mole” dos seringueiros no Acre, o seringalista passou a ter um verniz de afeto, com a chegada posterior das mulheres e constituição de famílias por parte do seringueiro, o seringalista se oferecia para ser padrinho da menina ou menino que acabara de nascer, a intenção com o suposto ato de afeto era amolecer os corações dos explorados, pois caso houvesse uma insatisfação, o seringalista logo dizia, somos compadres e eu sou o padrinho do seu filho, estive com o pároco no batismo e em alguns momentos lhe dei algumas lembrancinhas. Na psique do seringueiro, como ele poderia se insurgir contra o seu “cumpadi”?

Naturalmente, nenhum seringueiro veio ao Acre sabendo qual era a dura realidade que lhe aguardava e muito menos sabia do seu triste futuro nas mãos dos autoritários e gananciosos seringalistas. Vinham para cá com a promessa de dinheiro fácil e rápido, falava-se que não era necessário trazer suas mulheres porque logo voltariam para suas casas e famílias. Quando se davam conta do engano, as promessas eram refeitas, alegava-se uma dívida impagável decorrente dos custos de transporte, alimentação, etc. Muitas dessas dívidas se quer existiam, depois com o advento do apadrinhamento ficou ainda mais complicado, afinal com a “família” não se discute, passou-se a ter gerações e gerações de pessoas que já nasceram aqui e que se quer imaginavam uma realidade diferente, possibilidade de algo melhor.

 

O autoritarismo faz parte da gênese acreana, este estado se constituiu assim, na base do pouco diálogo e de muita opressão,(…)

Infelizmente essa mentalidade ainda está presente em muitos, tanto que não é tão incomum vermos uma pessoa mais abastada sendo padrinho ou madrinha de alguém menos favorecido no Acre. Agrega-se, a ideia de alguém forte, imperioso e a falsa noção de afeto que foi construída. O autoritarismo faz parte da gênese acreana, este estado se constituiu assim, na base do pouco diálogo e de muita opressão, pois ninguém escolheu trabalhar a troco da subsistência, isso foi estabelecido a base do engano e da força bruta.

Como a psique do seringal se faz ainda muito presente, para o bem e para o mal, temos o espectro do autoritarismo que em partes explica o porquê de muitos acreanos clamarem por uma intervenção militar. Não sabem ou ignoram o horror que é viver em um mundo onde não há a pluralidade de ideias e pensamentos, onde não temos a possibilidade de contestar uma decisão, por mais estúpida e brutal que ela seja. Não aprenderam com a História do mundo, do Brasil e do Acre, que quando estamos sob a cortina do “manda quem pode, obedece quem tem juízo”, as coisas mais atrozes acontecem.

Apesar de este texto salientar aspectos negativos da psique do seringal, o lugar de onde saiu à maioria dos nossos avós também foi marcado pela solidariedade, compaixão pelo próximo e ajuda mútua entre os oprimidos, além disso, deixou em muitos de nós o amor pela natureza e pela vida rural; sou como a maioria dos acreanos neto de seringueiro e tenho muito orgulho disso.

Kairo Araújo, estudante da Ufac


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