No Uol: Kotscho e as mil vidas do Bispo Pedro Casaldáliga

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Foto publicada no Watican News

oestadoacre reproduz do Uol texto do jornalista Ricardo Kotscho sobre o Bispo Pedro Casaldáliga y Pla.


Pedro Casaldáliga (1928-2020): “Quero ser enterrado às margens do Araguaia

 

Pedro Casaldáliga y Pla, profeta e poeta da América Latina, era espanhol da Catalunha e veio para o Brasil como missionário, em 1968, para trabalhar na região do Araguaia, bem no ano do famigerado AI-5, que agora querem ressuscitar com outro nome.

Bispo emérito de São Félix do Araguaia, no Mato Grosso, onde passaria o resto da sua vida, Pedro não voltou para a Espanha nem para o enterro do pai, ao saber que o regime militar não lhe daria o visto para voltar ao Brasil, onde se tornou um ícone da resistência à ditadura, da defesa da população indígena e da luta pela posse da terra para quem nela trabalha.

Promovido a inimigo mortal por latifundiários, grileiros, madeireiros, garimpeiros e todos os invasores que continuam chegando e ameaçando a sobrevivência da Amazônia, o franzino Pedro, um fiapo de gente, não tinha medo de nada. Escapou de todas as ciladas e chegou aos 92 anos na luta.

Foto: Watican News

Gravemente doente, com problemas no pulmão e sofrendo há anos do mal de Parkinson, foi transferido esta semana para um hospital da sua congregação em Batatais, no interior de São Paulo, onde morreu na manhã deste sábado.

“Tive oito malárias, tomei muito remédio. Espero pelo menos conservar o ouvido para continuar escutando sempre a voz do povo e a voz de Deus. Nunca pensei em deixar São Félix. Quero morrer no Araguaia e ser enterrado às margens do Araguaia”.

Assim ele começou sua entrevista para a repórter Mariana Kotscho no programa “Almanaque”, da Globonews, em 1996, uma das últimas que concedeu à televisão brasileira.

Em meia hora, ele falou da vida de missionário “na terra de ninguém”, das terras indígenas invadidas por fazendeiros, dos choques com os latifundiários, das quatro crianças que morreram no dia da sua chegada e foram enterradas em caixas de papelão, da escola que montou pelo método Paulo Freire e de como escapou com vida de todas as ameaças.

As mil vidas de Pedro já inspiraram muitos livros de prosa e poesia, dele e de outros autores, contando essa saga, que ele resumiu na entrevista para a Globonews.

Algumas passagens:

“Me sinto um brasileiro nacionalizado pela paixão, pela malária e pelo carinho do povo brasileiro”.

“Fui nomeado bispo à beira do Araguaia, em 1971, porque era o único naquela região. Ganhei como mitra um chapéu de palha e, como báculo, um cajado, como usam os bispos, um remo de pau-brasil dos índios tapirapé, uma das tribos da região”.

“Em 1976, padre João Bosco foi assassinado aos meus pés, no meu lugar. Ele tinha mais tipo de bispo do que eu… Me senti por um lado libertado da morte mais uma vez e, por outro, comprometido com a vida. Eu acho que o Senhor me deu mais vida para fazer alguma coisa, até para fazer essa entrevista aqui com você, Mariana…”

“Hoje tem mineradoras e madeireiras ocupando mais espaço. Em três ou quatro anos, a mata vai desaparecer aqui na região de Querência, no Mato Grosso”.

“A Teologia da Libertação é a própria fé cristã se voltando para os pobres”.

“Vou te fazer uma confissão que pode até parecer meio vaidosa: eu acho que eu poderia ter sido um bom poeta”.

“Hoje faço poesia no modo de me comunicar, de gritar as dores e as esperanças do povo e de passar o evangelho cantando. Minha poesia tem sido uma poesia comprometida”.

“Dizia para você que, depois de uns dias de chegar no Mato Grosso, naqueles tempos que não tinha nada, nem luz, nem condução, escrevi este poema:

“Saber esperar sabendo que o tempo não existe mais/ Saber esperar, sabendo ao mesmo tempo forçar as horas daquela urgência/ que não permite esperar”.

“Eu acredito no Deus da vida e acredito que a humanidade é filha de Deus. Espero que a humanidade não se suicide. Por que tem genética divina”.

“Obrigado, Mariana, porque nós nem sempre podemos falar ao Brasil”.

A missa de exéquias está marcada para este domingo, às 10 horas, na capela dos Missionários Claretianos, em Batatais. De lá, o corpo seguirá para Ribeirão Cascalheira, no Mato Grosso, a primeira paróquia de Pedro no Brasil, onde será velado, ainda sem previsão de chegada do corpo.

O enterro está marcado para São Félix do Araguaia, como ele queria, ainda sem previsão de dia e horário, depois de ser velado no Centro Comunitário Tia Irene.

 

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