Leitura em dose curta17-M

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by JLab – Pensará o leitor mais desavisado: -Ó, leitura em dose rápida, tu que tentas domar o tempo e encurtar as palavras. Não, não me tente com sua promessa de rapidez…

Bate pronto: leitura em dose rápida também é contemplação, deleite à imersão profunda…

Capítulo VI: O Navio Negreiro – Castro Alves

‘Era um sonho dantesco… o tombadilho Que das luzernas avermelha o brilho. Em sangue a se banhar. Tinir de ferros… estalar de açoite… Legiões de homens negros como a noite, Horrendos a dançar…

Negras mulheres, suspendendo às tetas Magras crianças, cujas bocas pretas Rega o sangue das mães: Outras moças, mas nuas e espantadas, No turbilhão de espectros arrastadas, Em ânsia e mágoa vãs.

E ri-se a orquestra irônica, estridente… E da ronda fantástica a serpente Faz doudas espirais… Se o velho arqueja, se no chão resvala, Ouvem-se gritos… o chicote estala. E voam mais e mais…

Presa nos elos de uma só cadeia, A multidão faminta cambaleia E chora e dança ali! Um de raiva delira, outro enlouquece, Outro, que martírios embrutece, Cantando, geme e ri!

No entanto o capitão manda a manobra, E após fitando o céu que se desdobra, Tão puro sobre o mar, Diz do fumo entre os densos nevoeiros: “Vibrai rijo o chicote, marinheiros! Fazei-os mais dançar!”.

E ri-se a orquestra irônica, estridente… E da ronda fantástica a serpente Faz doudas espirais… Qual um sonho dantesco as sombras voam! Gritos, ais, maldições, preces ressoam! E ri-se Satanás!…

Senhor Deus dos desgraçados! Dizei-me vós, Senhor Deus! Se é loucura… se é verdade Tanto horror perante os céus… Ó mar, por que não apagas Co’a esponja de tuas vagas De teu manto este borrão?…

Astros! Noite! Tempestades! Rolai das imensidades! Varrei os mares, tufão!…

Quem são estes desgraçados Que não encontram em vós Mais que o rir calmo da turba Que excita a fúria do algoz?… Quem são?… Se a estrela se cala, Se a vaga à pressa resvala Como um cúmplice fugaz, Perante a noite confusa… Dize-o tu, severa Musa, Musa libérrima, audaz!…

Esses infelizes são Negros filhos do deserto Nos braços do Brasil-Portugal Nasceram do útero incerto, E são os enteados do futuro, Filhos de povos alienados, Soam a canção de maldito, Abandonado por seus pais…

PS¹: o poema então clama ao “Senhor Deus dos desgraçados”, questionando a existência de tanto horror perante os céus. O autor faz um apelo ao mar, aos astros, à noite e às tempestades para que apaguem essa mancha e varram o sofrimento como um tufão.

PS²: esse trecho é parte do poema “O Navio Negreiro” de Castro Alves, um dos seus mais conhecidos e impactantes trabalhos.

PS³: Castro Alves expressa toda a sua indignação com a escravidão.

PS: Castro Alves nasceu há 176 anos.

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