Nos próximos meses, recrudescerá a tentativa de impeachment da presidente da República. As cartas já estão na mesa. Aliás, estão desde o julgamento da AP 470.
Autor: Luis Nassif – GGN
Em regimes democráticos, golpes não são meramente uma quartelada planejada por meia dúzia de conspiradores. Há a necessidade de, inicialmente, criar-se a mobilização da opinião pública e, depois, se cumprir rituais, formalismos, dando aparência de legalidade ao golpe, que seja convalidado por um dos dois poderes da República – o STF (Supremo Tribunal Federal) ou o Congresso.
O modelo é conhecido, do suicídio de Getúlio, à queda de Jango e de Collor.
Na América Latina pós-ditaduras, todos os golpes – de André Peres e Fernando Collor a presidentes de esquerda – começaram com uma campanha midiática, que, exacerbando a opinião pública, convalidou o impeachment via Congresso ou Supremo.
A reação dos presidentes ajuda a reforçar a tese do contragolpe.
No caso de Getúlio Vargas, a pá de cá foi quando seus parentes, junto com Gregório Fortunato, planejaram o atentado da Rua Toneleros.
No episódio Jango, criou-se o clima de perda de controle da economia e de ameaça da tal república sindical. A pressão do cunhado Leonel Brizola o levou a um esboço de enfrentamento em condições de desigualdade. O mesmo ocorreu com Collor. Apenas reforçaram o golpe.
Depois, há a necessidade de um Congresso e um Supremo que endossem o golpe.
Contra Vargas, a conspiração contou com Café Filho; contra Jango, Auro de Mora Andrade e Ranieri Mazilli. A intervenção militar foi um acidente não previsto pelos conspiradores. Daí se entende a condenação de próceres do PSDB a esse chamamento à caserna. O golpe precisa ser civil.
Contra Collor, Ulisses, o PT e a OAB (Ordem dos Advogados do Brasil) nacional dando uma suposta legitimação legal.
O quadro atual
Já estão em marchas os seguintes passos:
Ponto 1 – O clima de exacerbação.
A campanha sistemática da mídia contra a corrupção e o tal bolivarismo surtiu efeito na exacerbação da opinião pública. Seus ecos no centro expandido de São Paulo, nas associações empresariais, nos clubes sociais lembram em tudo o ambiente descrito por René Dreiffus em seu livro sobre o golpe de 64.
Ponto 2 – A manipulação da Lava Jato.
A capa de Veja – com informação falsa sobre declarações de Alberto Yousseff – é comprovante de que haverá farto uso político da operação Lava-Jato, com vazamento seletivo de informações e a disseminação de boatos.
Ponto 3 – A intimidação do STF.
A entrevista de Gilmar Mendes à Folha, falando em “bolivarização” do STF é o primeiro ensaio de uma nova rodada de intimidação do Judiciário, especialmente do STF (Supremo Tribunal Federal) e do Procurador Geral da República. Outras publicações já ousam pressões sobre Teori Savazki. A mitificação do juiz Sérgio Moro será utilizada, mais adiante, para um eventual enfrentamento com o legalismo do Supremo.
Juntando os pontos – A estratégia do impeachment.
É praticamente impossível que Dilma tenha participado ou compactuado com qualquer irregularidade. A Lava Jato provavelmente atingirá todo o mundo político. O doleiro Alberto Yousseff operava para todos os partidos. Mas, com o clima exacerbado, acreditar-se-á que em se plantando, qualquer factoide dá – como comprova a tentativa de Veja. Mas para isso há de se contar com um Supremo e um PGR intimidados pelo alarido da mídia.
Definindo a estratégia
Uma estratégia legalista de combate ao golpe terá que partir de uma análise detalhada das principais peças do jogo.
1. Mercado da opinião pública
Grosso modo, pode ser dividido em dois sub-mercados: o mercado do establishment e o mercado dos novos incluídos.
Simplificadamente, compõem o mercado do establishment o Poder Judiciário, estamento militar, Ministério Público, classe empresarial e classe média em geral. É um mercado amplamente influenciado pelos grupos de mídia, com valores e sentimentos em comum. No momento, o sentimento mais intenso a perpassar todos os grupos é o antipetismo.
Já o mercado dos novos incluídos é composto por movimentos populares tradicionais, como sindicatos e velhos partidos de esquerda, movimentos sociais mais antigos, até movimentos mais recentes de inclusão. Em outros tempos, era um mercado em que as informações chegavam apenas pelos sindicatos, Igrejas e assembleias. Hoje em dia, é majoritariamente digital. Mas obviamente não é hegemônico nem no digital.
Em todos grandes movimentos de inclusão da história – dos Estados Unidos do século 19 ao Brasil atual – esse paradoxo deflagra as crises políticas: o mercado dos incluídos têm o voto; o mercado do establishment, o poder.
Há um meio campo relevante no mercado do establishment, formado por personalidades públicas defensoras do legalismo, das responsabilidades sociais do Estado e contrárias à radicalização e aos golpes de Estado. É a chamada elite esclarecida, espécie meio rara em países politicamente anacrônicos.
O embate contra tentativas de impeachment têm que ocorrer no mercado de opinião do establishment, buscando-se aliança com vozes legalistas..
Qualquer reação de militâncias apenas ampliará os efeitos da retórica da bolivarização.
2. Os personagens da nova aventura
O jogo fica mais nítido quando se coloca a lupa sobre os principais personagens do mercado do establishment.
Há dois grupos de personagens.
No primeiro grupo, os inimigos irreconciliáveis do governo: PSDB e grupos de mídia, conforme se mostrará a seguir.
No segundo grupo, os personagens que serão disputados e decidirão o jogo do impeachment: sistema judiciário (STF e PGR), o Congresso, setores influentes do establishment, como juristas, lderanças empresariais, vozes influentes da sociedade civil.
O PSDB
O PSDB não conseguiu definir um projeto alternativo de poder. Seu discurso é exclusivamente antilulista.
O Instituto Teotônio Vilella não tem peso, os intelectuais tucanos ou desistiram do partido ou desistiram de pensar o novo e aderiram ao jogo de intolerância dos grupos de mídia. Até agora não há uma força visível no partido capaz de promover o aggiornamento necessário para torná-lo um partido efetivo, com propostas claras que não sejam meramente o exercício do anti.
A estreia triunfal de Aécio no Senado, na primeira sessão pós-eleições, comprova que a única maneira de ele preservar a visibilidade e o cacife acumulado nas eleições será através de eventos triunfalistas sucessivos. E só consegue na guerra e na aliança com os grupos de mídia. A submersão de José Serra é sintomático de que, no PSDB, já houve uma divisão racional dos trabalhos.
Essas circunstâncias colocam o PSDB inevitavelmente na aposta do impeachment – sem Forças Armadas, é claro.
GRUPOS DE MÍDIA
No período Vargas – anos 40 e primeiro governo até a queda de Jango-, o que mais acirrou os grupos tradicionais foram as tentativas de Getúlio de mobilizar empresários aliados a entrarem no setor.
No governo Jango, a imprensa radicalizou os ataques depois que novos grupos tentaram entrar no mercado de mídia, os Wallace Simonsen, na TV Excelsior, Santos Vahlis (um empresário venezuelano, que atuava no ramo imobiliário, ligado a Leonel Brizola) que tentou adquirir um jornal no Rio
Na redemocratização, teve início a era das TVs a cabo e do UHF. Através de Antônio Carlos Magalhães, Sarney negociou com vários grupos de mídia, que receberam concessões ou listas telefônicas. Já Fernando Collor não cedeu a nenhum dos pedidos e ameaçou montar sua própria rede, através da CNT dos irmãos Martinez.
Um chegou ao final do mandato, o outro, não.
Agora, com a Internet, a cada dia que passa a TV aberta perde relevância. A mídia impressa caminha para o fim antes que alguns dos grupos consigam fincar estaca no novo mercado.
Mantidas as condições atuais de temperatura, com o mercado publicitário rompendo a cartelização e caminhando para a Internet, a resultante é a seguinte:
Estadão (com exceção da Agência Estado) e Editora Abril perderam o bonde – o que explica a aposta do “tudo ou nada” de Fábio Barbosa à frente da Veja.
A Globo continuará um grupo poderoso, mas não voltará mais a ter o poder absoluto da era pré-Internet.
A Folha foi salva pela UOL. Mas não prescinde da influência política do jornal para competir com grupos internacionais muito mais poderosos no setor de serviços de Internet.
As demais TVs abertas não conseguiram expressão. Morrerão lentamente, junto com a TV aberta.
Em crise, os grupos de mídia terão que conviver com o avanço avassalador da Internet, com grupos de fora invadindo a área e com as propostas de regulação de mídia que se tornaram inevitáveis em todos os países desenvolvidos. O Google já é o segundo faturamento publicitário do país sem produzir uma só notícia.
Esta é a razão principal para não poderem aceitar qualquer armistício político. Ou conquistam o poder e tentam colocar o país remando para trás, ou serão varridos do mapa pelos ventos da modernidade.
PODER JUDICIÁRIO
Há um evidente mal-estar do sistema judiciário – incluindo a corporação do Ministério Público Federal – com o PT e com Dilma. E o fator Paulo Roberto Costa ampliou essa resistência e ampliará ainda mais à medida que os depoimentos forem vazados para a mídia e tenha início o julgamento.
Se, de um lado, a Operação Lava-Jato tem um potencial explosivo muito maior que a AP 470, por outro lado tem-se um STF e uma PGR mais legalistas e capacitados para enfrentar as investidas da mídia. E uma OAB (Ordem dos Advogados do Brasil) que livrou-se da politização rasteira do antigo presidente.
O Ministro Gilmar Mendes sempre exerceu a liderança de fato no STF devido ao seu conhecimento jurídico, malícia política e a uma agressividade sem limites.
A entrada de Teori Savaski e Luís Roberto Barroso inverteu esse jogo. Agora há uma nova correlação que fortalece o papel legalista de Ricardo Lewandowski e devolve o equilíbrio a Celso de Mello.
Os próprios abusos da mídia contra Ricardo Levandowski e, depois, contra Celso de Mello, os exageros persecutórios de Joaquim Barbosa provocaram críticas intensas no meio jurídico e geraram anticorpos, com as manifestações de juristas de todas as linhas que, no pós-mensalão, saíram em defesa das garantias individuais – de Celso Antônio Bandeira de Mello a Yves Gandra da Silva Martins e Cláudio Lembo.
Além disso, saiu um PGR totalmente submisso ao clamor da mídia e entrou outro que tem mostrado (até agora) maior capacidade profissional, sem embarcar no oficialismo mas sem ceder às pressões da mídia.
Finalmente, pela repetição reiterada, há um desgaste do padrão Gilmar-mídia de influir no jogo:
1. Gilmar Mendes criava um factoide – tipo “grampo no STF”, “grampo sem áudio”, conversa com Lula.
2. Os grupos de mídia reverberavam e geravam o clamor das turbas.
3. O clamor era utilizado como instrumento para Gilmar impressionar os colegas crédulos (como Celso de Mello) e pressionar os recalcitrantes.
Dificilmente os grupos de mídia terão a desenvoltura de atacar Ministros, como fizeram no mensalão. Mas as sementes plantadas contra o PT floresceram. E as bombas do Lava Jato são de um potencial imprevisível.
MEIO EMPRESARIAL
A ideia de que o meio empresarial conspira não é totalmente verdadeira.
Grandes grupos que negociam com o Estado compõem com o governo de plantão. Entram na conspiração apenas quando pressentem a queda iminente do governante. Os demais querem apenas um ambiente de negócios favorável e previsível.
CONGRESSO E PARTIDOS POLÍTICOS
Não é difícil compor maioria no Congresso. Mas o trabalho atual será dificultado pelas restrições orçamentárias, pela pulverização partidária e também pelo fator Eduardo Cunha, o deputado alvo de cinco inquéritos por corrupção que conseguiu fincar suas bases na parte mais podre da Câmara. Cunha é o retrato acabado da hipocrisia moralista dos grupos de mídia.
O xadrez político
A estratégia em 2013
Em fins de 2012, com o STF dominado circunstancialmente pelo grupos dos cinco, e a PGR sob o comando dúbio, montei o seguinte xadrez para o jogo político futuro.
A estratégia do golpe consistiria na escandalização, insuflando o clamor da mídia com cobertura intensiva do julgamento e pressionando Congresso e Judiciário. Àquela altura o STF estava dominado pelo pacto circunstancial dos cinco Ministros – Joaquim Barbosa, Gilmar Mendes, Luiz Fux, Marco Aurélio de Mello e Celso de Mello.
Sugeriam-se as seguintes estratégias para esvaziar a tentativa:
- Indicação de Ministros técnicos e legalistas para o STF e de um procurador de peso para a PGR.
- Mudanças na Secretaria de Relações Institucionais, aprimorando as relações com o Congresso Nacional.
- Precaução com os escândalos, especialmente com os super-financiamentos concedidos pelo BNDES (Banco Nacional do Desenvolvimento Econômico e Social), grande fator de desgaste junto ao empresariado paulista.
- Melhoria da gestão da economia e mudança da centralização de Dilma. Aprimoramento da gestão do PAC, do pré-sal e da qualificação do Ministério como um todo.
- Preocupação com crescimento do PIB e inflação.
Na época, havia diferenças em relação ao momento atual:
o O quadro econômico não era tão ruim.
o O STF estava muito mais infenso a pressões dos grupos de mídia.
o O RDC (Regime Direto de Contratação) parecia ser fonte de problemas. Não foi. Assim como a Lei dos Portos.
A estratégia em 2015
CONDICIONANTES ATUAIS
Juntando-se as peças já analisadas, o quadro fica assim:
1. A Operação Lava-Jato tem potencial explosivo maior que a AP 470. Seus desdobramentos são imprevisíveis.
2. A radicalização dos últimos anos ampliou a capacidade dos grupos de mídia de insuflar o clamor da opinião pública.
3.O país enfrenta problemas na área econômica, com reflexos próximos sobre o emprego e as despesas sociais.
4.Haverá um Congresso mais hostil pela pulverização partidária, um orçamento mais apertado para atender às demandas políticas e os escândalos dos últimos anos tornam extremamente desgastantes os acordos políticos fundados em loteamento de cargos.
5.A disputa se dará entre o governo Dilma de um lado, PSDB e grupos de mídia de outro, os dois lados disputando os demais atores – empresários, políticos, classe média, intelectuais, movimentos sociais.
Juntando as peças
Em cima desses dados, o desafio é montar o jogo de xadrez analisando características de cada personagem, a dinâmica da ofensiva pró-impeachment e as estratégias defensivas.
REVERSÃO DE EXPECTATIVAS
Há uma estratégia de fundo, que consiste em reverter o atual quadro de expectativas do establishment. Sem expectativas favoráveis, a política econômica não decola. Sem crescimento, não haverá como reduzir a pressão dos empresários, fortalecer a aliança com os movimentos sociais, negociar com o Congresso e consolidar o segundo tempo.
Uma política econômica bem conduzida não trará frutos em menos de dois anos. Essa transição exigirá um Ministério de alto nível fazendo a mediação com a sociedade, e monitorando didaticamente a travessia.
A opinião pública terá que entender adequadamente o processo de recuperação da economia, os passos que estão dados e a maneira como irão se refletir no médio prazo.
Há que de colocar pessoas de nível na Fazenda, Tesouro e Banco Central e trabalhar rapidamente – ouvindo todos os setores – os pontos de estrangulamento dos investimentos públicos.
Mas é condição necessária uma forte atuação política de Dilma que crie expectativas favoráveis para a implantação do plano econômico. A revitalização do CDES (Conselho de Desenvolvimento Econômico e Social) e a renovação dos madatos dos conselheiros poderá ser um bom momento para essa reaproximação com a sociedade civil.
NOVO MINISTÉRIO
No final da eleição, Dilma declarou que momentos de crise são aqueles mais propensos a grandes mudanças. Têm toda razão.
Por isso mesmo, na hora de definir seu Ministério terá que considerar que o Ministro escolhido será seu representante junto ao segmento econômico-social trabalhado pelo Ministério. E a adesão desses segmentos a um projeto de governo dependerá fundamentalmente da capacidade de criar canais de participação.
JOGO DA INFORMAÇÃO
Até hoje, o governo Dilma foi inerte no mercado de mídia.
Não desenvolveu uma estratégia coordenada de contrainformação. Abandonou projetos de montar rede social interna do governo que permitisse articular o sistema de informações dos diversos Ministérios.
Permitiu a proliferação de práticas odiosas da Fazenda e Banco Central, de sonegar informação a veículos que não sejam da velha mídia. Quando perderam o apoio dos grupos de mídia, ficaram pendurados na broxa.
Depois de conhecido o resultado das urnas, seu primeiro gesto foi conceder entrevista às três redes de televisão.
Criou o terreno ideal para alimentar os inimigos: os grupos de mídia não têm nada a ganhar com Dilma (que não faz negócios) mas também não têm nada a perder.
PODER JUDICIÁRIO
Mais do que nunca, há a necessidade de interlocutores do Palácio com o sistema judiciário.
Tem que ser um jurista de alta estirpe, legalista até a medula, acatado pelo Supremo e pelo Ministério Público Federal, com influência sobre as cabeças liberais da opinião pública e liderança sobre a Polícia Federal, com capacidade para dialogar com o mundo político e jurídico e experiência suficiente para entender e monitorar o jogo de contrainformações que já brota da Operação Lava Jato.
OPINIÃO PÚBLICA
O combate radical à corrupção terá que ser peça central do segundo governo Dilma. Tem que tomar medidas expressas que convençam a opinião pública da blindagem definitiva das estatais e dos Ministérios e a definição de novas regras de aliança partidária.
[publicado originalmente em GGN]