Neste 01 de abril (correção), data do Golpe de 1964, o blog reproduz esse texto da Carta Capital de 2014 sobre o atentado do Riocentro, ato terrorista fracassado cometido por militares de direita para culpar a esquerda e evitar a Democracia no Brasil.
Leia:
Marsílea Gombata
Carta Capital
As reuniões eram feitas no restaurante Angu do Gomes e no bordel vizinho a ele, na zona portuária do Rio de Janeiro. Também o Garota da Tijuca, na zona norte, era usado. Nos encontros, era discutido à exaustão o planejamento de um ataque de proporções gigantescas que servisse para comprovar a necessidade de ser mantida a repressão do regime militar brasileiro contra grupos de esquerda.
Fracassado em 30 de abril de 1981, o atentado a bomba no Riocentro estava previsto para ser executado um ano antes. O ataque contra 20 mil pessoas foi arquitetado inicialmente para o show de 1º de maio de 1980, mas postergado para o ano seguinte, tempo utilizado para o treinamento de agentes que fariam parte das equipes designadas para a missão.
A ação, segundo denúncia feita pelo Ministério Público Federal do Rio de Janeiro na segunda-feira 17, fora arquitetada por Edson Sá Rocha (de codinome “Dr. Silvio”) para o “habitual show do ‘Dia do Trabalhador’, na véspera do 1º de maio”, onde se apresentariam diversos artistas. De acordo com o texto da investigação, coordenada pelo procurador Antonio do Passo Cabral, do grupo de trabalho Justiça de Transição do MPF, “o show era promovido pelo Cebrade e arrecadaria fundos para o Partido Comunista Brasileiro (PCB).”
“O plano de 1980 já mostrava que o Riocentro era uma obsessão para os militares por causa da simbologia que trazia”, explica Cabral. “Era uma resistência à ditadura que irritava muito esse pessoal linha dura.”
O fato de o ataque ter sido planejado desde 1980 ajuda a corroborar a tese de que o Riocentro não era um caso isolado e estava inserido em um plano pautado por uma série de ataques a bomba que visavam utilizar táticas terroristas a fim de justificar um endurecimento da ditadura militar. À época, o general João Figueiredo, então presidente da República, estava comprometido a dar continuidade ao processo de “distensão” iniciado no governo Geisel, que contava com o desaparelhamento de órgãos incumbidos da repressão a opositores, como o SNI (Serviço Nacional de Informações) e o DOI (Destacamento de Operações de Informações).
No entanto, militares mais radicais – como aqueles à frente do atentado do Riocentro – estavam insatisfeitos com o “processo de abertura” e se sentiam desprestigiados, de acordo com a denúncia: “Eram militares da ‘comunidade de informações’, podendo ser qualificados como da ‘linha dura’. Eles não concordavam com o desmonte dos órgãos de inteligência desde o governo Geisel, tampouco com a abertura política operada por Figueiredo. Pretendiam um recrudescimento da ditadura e praticaram atos de terrorismo de Estado para esta finalidade.” O chamado “grupo secreto” unia militares de órgãos como o SNI e o DOI, mas também civis de extrema direita que cooperavam com as ações.
De acordo com os procuradores, de 1980, quando foi apresentado o ataque no Riocentro, até o encobertamento das provas do atentado de 30 de abril de 1981, houve uma série de mais de 40 atentados a bomba. Um dos mais famosos dele, na Ordem dos Advogados do Brasil (OAB), foi uma das três explosões em diferentes pontos do Rio de Janeiro em 27 de agosto de 1980. Além da morte da secretária Lyda Monteiro da Silva na seção da OAB, na Câmara Municipal foram atingidos o assessor José Ribamar e mais cinco pessoas, enquanto um terceiro artefato explodiu no jornal Tribuna da Luta Operária. No mesmo ano, uma bomba foi desativada no Hotel Everest, onde estava hospedado Leonel Brizola, que em 1979 retornara do exílio, e outra no escritório do advogado de presos políticos Sobral Pinto. Explosões ocorreram na Escola de Samba Acadêmicos do Salgueiro durante comício do PMDB, na sede do movimento “Convergência Socialista” e no carro do deputado Marcelo Cerqueira em Santa Teresa.
Na denúncia, os procuradores deixam clara a intenção de evitar abertura. “Na falta de um perigo real, as alas radicais da ditadura estavam dispostas a unir-se em grupos paramilitares armados e agir para fabricar ameaças e tentar justificar uma volta à repressão mais violenta.” Faziam parte dessa ala o coronel reformado Wilson Luiz Chaves Machado (“Dr. Marcos”), o ex-delegado Claudio Antonio Guerra e os generais reformados Nilton de Albuquerque Cerqueira e Newton Araujo de Oliveira e Cruz, denunciados por homicídio doloso, associação criminosa armada e transporte de explosivo – sendo Cruz indiciado também por ter favorecimento pessoal –, o general reformado Edson Sá Rocha (“Dr. Silvio”), por associação criminosa armada, e o major reformado Divany Carvalho Barros (“Dr. Aureo”) por fraude processual. Além de poder passar de 66 anos de prisão, a condenação prevê ainda a perda do cargo público e o pagamento de indenização de 500 mil reais no total.
Não foram inclusos na denúncia agentes já falecidos, como Julio Miguel Molinas Duas (“Dr. Fernando”), que ordenou a retirada de documentos do interior do carro Puma onde explodiu a bomba que matou o sargento Guilherme Pereira do Rosário (“agente Wagner”) e o tenente-coronel Freddie Perdigão Pereira (“Dr. Flávio”), que atuou em diferentes órgãos de repressão em São Paulo e no Rio de Janeiro, como a “Casa da Morte”, na cidade serrana de Petrópolis.
A lenta transição brasileira
Mas por que tais elucidações só se dão tanto tempo depois do ocorrido? Para Marlon Alberto Weichert, que assina a denúncia com Cabral e outros quatro procuradores, há fatores de ordem jurídica e política que fizeram o caso ser esclarecido somente agora. “A transição brasileira foi muito lenta e negociada. Há toda uma geração que assimilou o discurso oficial da impunidade e da ocultação dos fatos. E para uma geração relativamente nova de procuradores do MPF não se aceita essa visão de que graves violações de direitos humanos sejam ocultadas ou impunes”, disse Weichert ao lembrar da sentença de 2010 da Corte Interamericana de Diretos Humanos (CIDH) sobre a Guerrilha do Araguaia como um importante divisor de águas. “Ali determinou-se que todos os agentes do Estado brasileiro promovam a responsabilização das graves violações de direitos humanos ocorridas durante a ditadura. E o que o MPF está fazendo é cumprir integralmente a decisão de uma corte internacional, à qual o Estado brasileiro se vinculou.”
Muitos dos envolvidos no que seria um dos maiores atentados à população brasileira tiveram seu trabalho reconhecido e foram condecorados pelo Exército. Enquanto Nilton de Albuquerque Cerqueira foi homenageado com a Medalha do Pacificador em 1971; Divany Carvalho Barros foi condecorado em 1975; Edson Sá Rocha, em 1982; e Wilson Machado, em julho de 2001. Além disso, o capitão Freddie Perdigão Pereira a recebeu em 1970, cinco anos antes da mesma homenagem feita ao sargento Guilherme Pereira do Rosário, morto pela bomba que explodiu antes do previsto no Riocentro.
“A Medalha do Pacificador ficou manchada por essa utilização espúria que dela foi feita durante um período da ditadura. Virou moeda de troca: quem compactuava e estava na linha de frente fazendo esse trabalho de tortura, assassinato e desaparecimento era ‘premiado’”, explica Cabral. “É uma pena, mas acaba sendo um elemento que utilizamos para a identificação de muitos criminosos. A concessão da medalha na época dos anos de chumbo, sobretudo depois do AI-5 até 1975, já acende uma luz vermelha para nós.”
Justiça comum
Apesar de trazer novas provas, a denúncia feita pelo MPF não encerra as investigações. Os procuradores pretendem ainda chegar a colaboradores não identificados que ajudaram no planejamento do ataque ao Riocentro.
Para isso, ressaltam a importância de o caso ser reaberto na Justiça comum e não na militar, como das tentativas de 1981 e 1999. “A competência para processar e julgar a presente causa não pertence à Justiça Militar porque os delitos imputados aos denunciados não estão arrolados entre os crimes militares indicados no Código Penal Militar”, diz o texto antes de ressaltar que a competência da Justiça comum para julgar os crimes cometidos durante o regime militar foi estabelecida na sentença da CIDH – “O Estado deve conduzir eficazmente, perante a jurisdição ordinária”.
“Crimes praticados por militares contra civis que envolvam graves violações de direitos humanos e crimes contra a humanidade fogem à competência da Justiça Militar. Esse é um entendimento do MPF, da ONU e da CIDH”, explica Weichert. “Além de não preencher os requisitos internacionais para ser admitida como uma Justiça autônoma, a Justiça militar somente pode funcionar para crimes estritamente militares e para infrações disciplinares, o que não é o caso de um ato terrorista praticado contra 20 mil civis.”
Assim, os procuradores esperam que a Justiça acate a nova argumentação, uma vez que se trata da primeira denúncia criminal feita pelo crime de “homicídio” (diferentemente das anteriores de sequestro, desaparecimento e ocultação de cadáver) e também por não estar coberta pela Lei de Anistia de 1979, explica Cabral: “O Judiciário tem sido muito conservador e refratário à revisão da Lei de Anistia, sobretudo pela decisão do Supremo Tribunal Federal a respeito. Mas a decisão do Supremo não é definitiva e ainda está pendente de recurso.”
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