Reforma agrária para cuidar do planeta

Foto: Manuela Hernandez

Abril de Lutas

OEstadoAcre.com publica entrevista de Solange Engelmann do MST

Fazer a Reforma Agrária é garantir que esse planeta seja cuidado”, afirma Gilmar Mauro

Em entrevista, o dirigente fala sobre a importância da ocupação, da função social da terra e da Reforma Agrária, além de projeções para o 7º Congresso do MST

Foto: Manuela Hernandez

Por Solange Engelmann

Chegamos a mais um Abril de Lutas, mês em que o MST realiza a Jornada Nacional de Lutas em Defesa da Reforma Agrária, este ano com o lema: “Ocupar, para o Brasil alimentar!”, durante todo o mês, com ações em todo o país.

Nesta Jornada, todos os anos, os trabalhadores/as Sem Terra cobram a realização de uma política de Reforma Agrária no Brasil. Política está prevista em Lei, na Constituição Federal de 1988, que no seu Artigo 184 determina que “compete à União desapropriar por interesse social, para fins de reforma agrária, o imóvel rural que não esteja cumprindo sua função social (…)”.

A Jornada de Lutas de Abril também traz a memória dos 21 Mártires da Terra, assassinados pela Polícia Militar do Pará, no Massacre de Eldorado do Carajás, no dia 17 de Abril de 1996. A data também é relembrada pela Via Campesina como o Dia Internacional da Luta Camponesa em todo o mundo.

Portanto, as reivindicações do MST na luta pela terra e pela Reforma Agrária há mais de 40 anos no Brasil, não foram criadas somente pela vontade dos Sem Terra, mas por estarem previstas na Lei maior do país. A Constituição determina, portanto, que o latifúndio que não cumpre a função social deve ser destinado para fins de Reforma Agrária, com o assentamento de famílias sem-terra nessas áreas. E também explica, no Artigo 186, o que é considerada como função social da terra:

“A função social é cumprida quando a propriedade rural atende, simultaneamente, segundo critérios e graus de exigência estabelecidos em lei, aos seguintes requisitos: I – aproveitamento racional e adequado; II – utilização adequada dos recursos naturais disponíveis e preservação do meio ambiente; III – observância das disposições que regulam as relações de trabalho; IV – exploração que favoreça o bem-estar dos proprietários e dos trabalhadores”, aponta a CF de 1988.

Mas, para que qualquer Lei seja cumprida no Brasil necessita-se de organização e capacidade de pressão social e, neste caso, isso depende das reivindicações dos trabalhadores/as do MST e dos demais movimentos populares no Brasil. Nesse sentido, a principal tática de luta adota pelo MST em seu processo histórico concentra-se na ocupação de terra, como um instrumento histórico e legítimo que não foi criado pelo MST, mas pelos movimentos de luta pela terra que o antecederam.

A ocupação de terra foi uma das formas encontradas para chamar a atenção da sociedade para o problema da concentração da terra no Brasil, dos sem-terra e da miséria no campo, bem como pressionar os governos para dar respostas sobre essa problemática, como explica o dirigente nacional do MST, Gilmar Mauro.

“[A ocupação] é a forma mais eficiente para mostrarmos para a sociedade e o governo. Foi principalmente com isso que conquistamos mais de 400 mil famílias assentadas em todo o Brasil. E se hoje, conseguimos oferecer produtos saudáveis, nós fazemos e desenvolvemos o princípio da solidariedade. Esta por trás desse gesto e dessa produção a ocupação de terras”.

O dirigente também enfatiza o papel da função social da terra no processo de luta pela terra, a importância da Reforma Agrária para as classes trabalhadoras, sua função central na produção de alimentos saudáveis, recuperação do meio ambiente e manutenção do planeta, além de projeções para o 7º Congresso do MST.

Confira a entrevista completa abaixo:

Você pode comentar sobre qual o papel da ocupação de terra na luta do MST e na produção de alimentos, para gerar vida e combater a fome no Brasil?

Gilmar Mauro. Foto: Arquivo pessoal

A ocupação é uma forma tática de luta anterior ao MST. Não foi criada em gabinete, mas pelas famílias sem-terra para buscar um espaço nessa imensidão de terras para a sobrevivência e para viver. O MST continuou fazendo ocupações de terra, não por achar bonito, não é fácil viver embaixo de lonas, embora haja beleza nas lutas, mas é a forma mais eficiente para mostrarmos para a sociedade e o governo: um, que existem famílias querendo terra para plantar e para viver; dois, que existem latifúndios improdutivos de grandes devedores, de violadores das legislações ambiental e trabalhista, trabalho análogo à escravidão, que existem terras públicas que não cumprem com a função social e três, que a conquista dessas áreas é fruto do povo organizado.

Foi principalmente com isso que conquistamos mais de 400 mil famílias assentadas em todo o Brasil. E se hoje, conseguimos oferecer produtos saudáveis, nós fazemos e desenvolvemos o princípio da solidariedade. Isso acontece, porque lá no início recebemos e continuamos recebendo muita solidariedade também.

“Está por trás desse gesto e dessa produção a ocupação de terras, não que esta seja a única forma ou tática de luta, mas é uma das mais importantes táticas que o MST desenvolveu e tem.

Ocupação das Mulheres Sem Terra na fazenda Aroeiras, em Lagoa Santa–MG. Foto: MST

Por que o MST defende a função social da terra e qual a importância disso no combate à concentração da terra, na produção de alimentos e no desenvolvimento do campo?

Não é só uma função social em relação às terras no Brasil, é a função social do planeta Terra. Nós estamos no momento em que o desenvolvimento da ordem do capital está provocando a destruição ambiental. O aquecimento global é um dos fatores. Nos últimos dez meses, a temperatura planetária subiu acima de 1,5 grau. Isso implicará na destruição cada vez mais acelerada do planeta e colocará em risco a existência humana nesse planeta.

Mas na particularidade brasileira, cumprir a função social estabelecida pela Constituinte de 88 é: um produzir racionalmente a terra em benefício de proprietários e dos trabalhadores; dois respeitar a legislação ambiental e três: respeitar a legislação trabalhista. Se nós fizermos qualquer estudo, e nem precisa ser profundo, vamos verificar que a grande maioria dos latifúndios e do dito agronegócio nesse país nem produz racionalmente, não respeita a legislação ambiental e não respeita a legislação trabalhista. Nós temos trabalhos análogos à escravidão, destruições ambientais gravíssimas em todo o país e, portanto, teríamos áreas de terra para a desapropriação ou expropriação, no caso de trabalho escravo e de desrespeito à legislação ambiental, para fazermos uma grande Reforma Agrária, para pensarmos um modelo de produção na agricultura completamente diferente.

E quando estamos falando em modelo de agricultura, nós não estamos falando de uma volta ao passado. Estamos falando de tecnologias que ajudem a diminuir a penosidade do trabalho agrícola, aumentem a produtividade, mas principalmente de alimentos saudáveis, como produção através de bio insumo, de agrofloresta, e de tecnologias que não agridam a natureza e o meio ambiente. É essa a Reforma Agrária que defendemos. É mais que uma Reforma Agrária, é uma revolução na agricultura brasileira e mundial, não só pela necessidade da categoria Sem Terra, pela necessidade da sobrevivência humana no nosso planeta.

Nesse sentido, qual a importância do MST e os movimentos sociais de luta pela terra em cobrar do Estado brasileiro a implantação de uma política de Reforma Agrária no país, para os trabalhadores/as que querem viver no campo?

A Reforma Agrária é uma bandeira burguesa criada na Revolução Francesa e vários países em todo o mundo realizaram reformas agrárias como forma de resolver problemas sociais e de desenvolvimento econômico. No caso brasileiro, nunca houve uma Reforma Agrária. No período da ditadura militar nós tivemos a melhor legislação sobre reforma agrária, o Estatuto da Terra. Melhor até que a Constituinte de 88. Entretanto, tem um ingrediente fundamental para a gente compreender, não basta ter uma boa legislação se não tiver movimento popular, fazendo luta e pressão. Ou seja, a ditadura criou uma boa lei, mas aniquilou as Ligas Camponesas e todo o movimento popular.

No Brasil, de 850 milhões de hectares de terra, nós plantamos com a agricultura em apenas 80 milhões. Destes, 21 milhões de hectares com milho, 45 milhões de hectares com soja, restando apenas 14 milhões de hectares de terra para os demais cultivos: feijão, arroz, batata, mandioca, etc. E hoje, no Brasil, são 150 milhões de hectares em pastagens.

Por isso, fazer a Reforma Agrária é fundamental para a soberania e segurança alimentar, para resolver um problema social, histórico e grave, e para resolver os problemas da fome e da miséria. Não há outra alternativa que não seja utilizar essa imensidão que é o território brasileiro para a produção de comida, para sustentar o principal patrimônio de um país, que é o seu povo.

Fazer a Reforma Agrária, portanto, não é só alimentar o povo, é garantir que esse planeta seja cuidado, pois uma Reforma Agrária na atualidade terá que discutir a agroecologia, agrofloresta, a produção orgânica para produzir alimentos saudáveis e preservar a natureza.

Alimentos dos assentamentos do MST comercializados na 3ª Feira Nacional da Reforma Agrária, em SP. Foto: Rafael Stedile

O MST entende que a construção da Reforma Agrária Popular será feita pela classe trabalhadora. Como o Movimento tem se articulado para impulsionar essa organização e luta nos últimos 40 anos?

O MST surgiu defendendo três grandes bandeiras: lutar pela terra, pela Reforma Agrária e por transformação social. E tem um aspecto muito importante a ser destacado, uma organização que não responde às necessidades da categoria que a criou não tem sentido de ser para essa. O MST foi criado pela categoria sem-terra e, portanto, ele terá que dar respostas à categoria Sem Terra e terá que continuar fazendo lutas, portanto, ocupações e outras formas de luta para resolver os três objetivos propostos no seu princípio.

A luta pela Reforma agrária depende de mudanças na correlação de forças políticas, seja do governo, mas principalmente do Estado brasileiro. E por isso, não é uma luta só da categoria Sem Terra. É uma luta de muitos setores das classes trabalhadoras brasileiras, e isso implica numa mudança estrutural, seja da terra, mas também do Estado e das políticas públicas.

Agrofloresta assentamento Mário Lago, SP. Foto: Filipe Augusto Peres

Uma Reforma Agrária Popular também significa levar políticas públicas, como uma boa educação para o campo, condições sociais, de saúde, de saneamento, de vida. Criar as condições nos assentamentos e no meio rural para que as pessoas vivam bem. E, ao mesmo tempo, ajudar a cuidar desse patrimônio brasileiro e mundial que é a terra.

Por isso, Reforma Agrária é fundamental e uma das coisas mais modernas na atualidade, no Brasil e no mundo.

O MST não é contra a titularização de terras nos assentamentos, mas defende a Concessão de Direito Real de Uso (CDRU) em contraposição ao Título de Domínio (TD), para que a terra seja passada de geração em geração e as famílias sigam com acesso às políticas públicas no campo. Como o MST tem buscado avançar nesse sentido?

Essa é uma questão muito especial, e tem a ver com a filosofia do MST. O Movimento defende que a terra, a água, sementes, biodiversidade e outros são patrimônio da humanidade e a terra, o planeta é o nosso espaço de vivência terrena. Por isso, defendemos que a terra não seja comercializada, que ela possa sim, nas áreas de assentamentos, ter algum documento que permita o seu uso e por isso, defendemos a Concessão Real de Uso, para que a terra seja repassada de pai para filho, para algum tipo de financiamento, etc; mas que não seja comercializada.

Aqui tem um ingrediente subjetivo, mas importante, que precisa ser discutido, que são os paradigmas de felicidade hoje, em função de estarmos subordinados à ordem do capital e da sua ideologia, a ideia de felicidade e de poder está associada ao ter, possuir, ganhar muito dinheiro. O que a gente quer como seres humanos, realmente? Quais são os paradigmas de felicidade que nós defendemos? Criar condições de viver bem ou do bem viver, é parte de uma construção política, concreta, que nós defendemos como MST. Nas áreas de assentamento e em todo o nosso país e no mundo. Por isso, discutir esse tema é fundamental. O que nós precisamos e queremos para sermos felizes e vivermos bem? É um belo debate para fazermos juntos, principalmente com as crianças e a juventude nesse momento.

Na construção do 7ª Congresso do MST, que diretrizes vêm sendo pensadas para avançar na produção de alimentos e combater a fome no país, a partir da Reforma Agrária?

Nós queremos fazer um Congresso massivo e não um Congresso só do MST, mas um Congresso que congregue outros setores da classe trabalhadora. Por quê? Porque hoje os progressistas em todo o planeta, enfrentam uma crise. Uma crise grave, que tem a ver com a crise do capital, mas que tem suas particularidades também porque é uma crise organizativa, uma crise política, uma crise de projeto, de mobilização.

E nós queremos criar as condições para que tenhamos uma metodologia de participação popular. O MST, de alguma forma, é uma referência e nós queremos projetar essa referência. Mas, mais do que isso é projetar valores, é projetar projeto político. E, por isso, vamos defender no nosso Congresso, sim, uma Reforma Agrária popular, uma revolução para a agricultura brasileira, com produção agroecológica, de agrofloresta, de preservação da natureza, de produção de comida e alimentos saudáveis, de melhores condições de vida.

(…)

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