Carlos Abrantes morre aos 81 anos (relembre o que ele disse nessa entrevista única e exclusiva feita em Portugal sobre sua vida de ‘exilado’ e o escândalo do governo que ele foi secretário de fazenda)

Carlos Abrantes morreu na quinta-feira, 18, em Portugal, onde vivia desde 1992.

Arquivo – Carlos Abrantes, ex-secretário de fazenda do governo Flaviano Melo – entrevista – oestado – fevereiro 2004 – Porto – Portugal

[Memória]

Autor: J R Braña B 

O exílio

Quando saí do Acre rumo à Europa não tinha certeza se, nos dias em que ficaria em Portugal, conseguiria entrevistar o ex-secretário de fazenda do Acre, Carlos Abrantes. Daqui do Acre eu não consegui falar ao telefone  com ele. Caía sempre numa mensagem eletrônica que não me dava alternativa alguma.

Em Lisboa, do hotel, fiz a primeira tentativa ligando para a sua casa, em Guimarães, região metropolitana da segunda cidade daquele país, Porto. Eram 8h da manhã do dia 5 de fevereiro (2h da madrugada em Rio Branco)

-Alô? Seu Abrantes, aqui é o Braña. Estou em Lisboa e gostaria de falar com o senhor. É possível?

-Sim.

-Pode ser amanhã?

-Não. Amanhã  tenho uma consulta e não posso. Depois de amanhã eu posso.

-Como eu faço para chegar até aí?

-Você vai à estação e pega o trem Alfa. E desce na estação Porto/Campanhã.

Assim eu fiz no dia marcado. Tomei o trem Alfa no horário das 7h55min. Nesse dia fiz a cozinha do hotel fazer o meu café antes das 6 da matina (1 da madrugada em Rio Branco). Por quê? Tudo é muito caro e se você se alimenta bem no Pequeno Almoço (o nosso café da manhã) você faz uma boa economia de Euros durante o dia com lanches e afins. Afinal de contas, os custos da minha viagem foram e estão sendo pagos com esforço próprio e de minha família.

Peguei o TGV (Trem de Alta Velocidade) na hora exata. Preço da passagem: E$ 20 (quase 80 reais). É dispensável falar das condições e conforto do trem. Coisas da Europa. Destino: a cidade do Porto. No Norte. Distancia: 350 km. Tempo de viagem: 3h11min, incluindo as paradas em cidades como Espinho, Coimbra, Aveiro e outras…

Acomodado na poltrona, comecei anotar o roteiro da conversa que tentaria ensejar com o ex-secretário de fazendo do Acre. Dividi o tempo de viagem fazendo  anotações, vendo a paisagem, às vezes paralelo ao Oceano Atlântico e, para minha surpresa, ouvindo duas senhoras falando nas poltronas atrás de mim sobre os imigrantes das ex-colônias que vão para Portugal e querem ficar no país de qualquer jeito.

-Não dá. Portugal não suporta tantos imigrantes. Portugal já fez muito pelo Brasil, por Angola etc etc…

Só não entrei na conversa porque não tinha o menor sentido. Mas que deu vontade, isso deu. De vez em quando o Brasil voltava na conversa das duas mulheres que falavam de parentes que vieram para cá e se acostumaram com os costumes locais.

-É. Eles têm lá os seus costumes e nós os nossos – chegaram elas a essa conclusão.

O carrinho de lanche do serviço de bordo do trem – que não está incluído no preço da passagem – parou no corredor, bem ao meu lado.

-Não. Obrigado – dispensei (lembra do Pequeno Almoço?)

Várias páginas do meu caderno já estavam repletas de anotações com perguntas para o senhor Abrantes. Algumas absurdas, admito. Mas o quê fazer? A personagem que ia encontrar tem uma história no Acre e não podia perder a oportunidade.

Porto começa aparecer pela janela do trem. Em instantes uma estação e um nome que ficaram a noite toda na minha cabeça: Campanhã.

-Será que vai dar certo? Será que o seu Abrantes vai mesmo encontrar comigo? – Tudo passava pela minha mente.

Afinal de contas, quando era bancário e do Sindicato, batemos muito no governo que ele defendeu e fez parte.

O trem parou. Desci. Não sei por que, mas saí com as duas máquinas fotográficas ligadas (uma digital e a outra normal) preparadas para clicar.

E se Abrantes me visse e não quisesse mais falar comigo? Estava preparado para qualquer situação. Tinha que estar.

O avistei antes do que ele a mim. Nos encontramos. Ele estava alegre, percebi.

-Olá, Braña! Fez uma boa viagem?

-Ótima, seu Abrantes.

Impressão pessoal. Mesmo com 70 anos e vítima de aneurisma abdominal (informação dele) o achei bem fisicamente. Com aparência saudável. Mais novo do que imaginei. Claro, o tempo faz as suas marcas e ele as  tem.

Entramos num táxi e fomos ao centro da cidade do Porto. Uma cidade fantástica que, infelizmente, não deu para aproveitar por, pelo menos, uns dois dias. No dia seguinte eu seguiria para Espanha e não dava para adiar.

Caminhamos pelas ruas. De vez em quando tínhamos que parar. Faltava-lhe ar. Abrantes ficava ofegante e não aguentava o meu ritmo. Depois se recompunha e continuávamos.

Almoçamos peixe num restaurante médio para os padrões portugueses. Depois entramos em monumentos do centro, vimos arte em azulejos e outras. Abrantes me mostrou o principal Teatro do Porto. A igreja Universal, essa do Brasil, tentou o comprar o local. Os artistas da cidade se reuniram, se acorrentaram ao prédio e o negócio foi desfeito. Para o bem o da cultura.

Depois de uma hora e meia de entretantos, eu e Abrantes chegamos aos finalmentes.

-Você pergunta e eu respondo – disse ele.

Eu quero conversar sobre tudo. Sobre as coisas ruins e sobre as coisas boas – respondi.

Explicação pessoal. Não fui a esse encontro com gosto de sangue na boca. Fui fazer um trabalho jornalístico que imagino irá servir para alguma coisa na imprensa do Acre. Mesmo compreendendo todos os problemas que envolvem o entrevistado, não me comportei como um juiz. Não sou a justiça. Quem julga é a justiça, que já o julgou e o sentenciou.

Nessa primeira parte da entrevista (a segunda foi publicada na edição seguinte do jornal O Estado e que você pode ler abaixo) Abrantes fala , com tristeza, da sua saída forçada do Acre. Do seu exílio e da falta que diz sentir das pessoas e das coisas que deixou aqui para refugiar-se na longínqua Guimarães. Quando faço uma pergunta sobre um  assunto que todos conhecem no Acre, Abrantes chora…

Jornal O Estado (OE) – Há quanto tempo o senhor deixou o Acre?

Carlos Abrantes (CA) – Eu saí em 1992.

OE – 12 anos.

CA – 12 anos de exílio.

OE – O senhor considera isso um exílio?

CA – Absolutamente. É um exílio.

OE – Como é que o senhor findou indo para o Brasil…O senhor pode contar essa história?

CA – Fui para o Brasil com 17 anos. Desembarquei na praça Mauá (Rio) sem conhecer uma pessoa sequer. E fui trilhando meus caminhos e com esforço, como sempre fiz, consegui triunfar e cheguei ao Acre na condição de um representante de laboratório farmacêutico.

OE – Em que ano se deu isso?

CA – Em 1954. No dia  6 de agosto de 1954.

OE – Como representante de laboratório e…?

CA – Foi amor à primeira vista. Em dezembro eu tinha direito a férias e optei por passar em Rio Branco. Em 1958 fixei residência definitiva no Acre. De 54 a 58 eu  ia ao Acre, em todos os municípios…eram sete na ocasião.

OE – Vender remédios…

CA – Exatamente…Como propagandista junto aos médicos e farmácias.

OE – O senhor pode explicar como uma pessoa nascida num país que tem toda uma história, um clima diferente, uma vida intelectual também diferente etc etc.. se apaixonar e ir morar num lugar quente, úmido, no meio da  floresta, tão distante como o Acre? Ainda mais naquele tempo em que o desenvolvimento era uma coisa impensável?

CA – É porque eu também nasci numa cidade pequena e onde todos se conheciam. E em Rio Branco foi exatamente o ambiente que encontrei. Quando cheguei a cidade era pequena. Terminava na Maternidade. Da Maternidade para lá não havia mais nada. Todos nos conhecíamos. Havia uma solidariedade muito grande entre as pessoas. Se morria alguém o comércio todo fechava. E a cidade me atraiu de tal maneira que, quatro anos depois, me fixei em termos definitivos. E por lá fiquei e de lá nunca quis sair. E se lá não estou é porque não posso.

OE – Que lição o senhor  tira desse período em que viveu no Acre?

CA – É um período relativamente longo, não é? Quando eu cheguei o Acre era território federal. Depois daquela empolgante luta, digamos assim, dos acreanos para que de território passasse a estado.

OE – O senhor acompanhou esse período da vida política do Acre?

CA – Acompanhei e aderi. Embora tivesse simpatia por um partido, que a priori, era contra a transformação do território em estado, eu, contrariando, digamos assim, a tendência quase que oficial do meu partido eu sempre fui adepto de que o Acre deveria – e não apenas deveria, mas merecia – transformar-se em um estado como de fato , felizmente para todos nós, aconteceu.

OE – O senhor chegou ao Acre como um homem de esquerda?

CA – Acho que essa classificação, de esquerda e direita, é de caráter muito subjetivo.

OE – Por que?

CA – Eu, às vezes, faço até uma comparação. Você pega uma baleia e um rato. Ambos são mamíferos. Mas a diferença entre um rato e uma baleia é abissal. Entre um morcego e um elefante, que também são mamíferos, é imensa a diferença entre um e outro. Então, quando se fala em esquerda ou quando se fala em direita é muito difícil de definir exatamente o que são. Diria que sou uma pessoa que sempre fui. E continua a ser. Um progressista. Sempre achei que a humanidade não para. A direita, ou que, arbitrariamente acho, se chama de direita, pretende a estabilização do mundo do jeito que ele está. Que o status quo não se altere. E eu penso exatamente o inverso. Que o mundo tem de caminhar rumo à utopia. Por mais lento, por mais difícil, por mais pedregoso que seja esse caminho.

OE – Qual é a utopia do mundo atual, senhor Abrantes?

CA – Vivemos hoje sem utopia. A utopia parece que está sepultada e é preciso ressuscitá-la. Hoje é o neoliberalismo, a globalização….são ficções, mitos que, parecem, como epidemias, tomaram conta do planeta e que têm significado um retrocesso no sentido da evolução rumo à utopia.

OE – Como o senhor avalia essa transformação de 15 países da Europa com a adoção do Euro?

CA – Eu acho altamente positivo. Em todos os níveis. Há ajustes a serem feitos. Muitos já fizeram. Há determinado preço a pagar por isso. Os estados que aderiram ao Euro perderam um pouco da sua autonomia no que se refere ao controle das suas finanças públicas, mas há infinitas vantagens. E essas vantagens estão à vista de todos. A moeda, digamos, que se constituía na moeda universal, o dólar, hoje já tem outra moeda para competir, que é o Euro. A ponto de o euro valer mais que o dólar. Então eu acho que competição é saudável, não apenas para os países que aderiram  ao euro, mas para a comunidade internacional como um todo.

OE – Qual é a sua rotina aqui na cidade do Porto?

CA – Eu vivo na cidade de Guimarães, que é, digamos, onde nasceu Portugal.

OE – Faz parte da grande Porto…

CA – Exatamente. É uma cidade pequena, com 50 mil habitantes. E eu diria que do meu tempo disponível 70% reservo à leitura e um pouco à internet. Em termos de lazer praticamente é isso. Tenho lido nesses últimos 10 anos, talvez, o que não tenha lido nos 50 anos anteriores.

OE – O que senhor lê?

CA – Sobre todos os assuntos. Preferencialmente, sobre história. E mais preferencialmente entre as vinculações  na história entre Portugal e o Brasil e entre o Brasil e Portugal.

OE – O Acre tem espaço nesse tipo de investigação histórica?

CA – Tem tanto espaço! Eu, inclusive, tinha um projeto de, junto à Torre do Tombo, aqui, investigar se a famosa comunicação  que o Estado Independente do Acre, o Galvez,  fez aos estados europeus da criação desse estado independente e se essa credencial foi entregue aqui. Mas o projeto está arquivado. Sine die, né? Que seria, talvez, relevante, interessante. Curioso, pelo menos, para a história do Acre saber  se esse enviado do Galvez, realmente, chegou a entregar essa credencial que comunicava a criação do Estado Independente do Acre.

OE – Deixou de lado mesmo esse projeto? De escrever sobre isso?

CA – Eu nunca deixei de lado nada que diga respeito ao Acre. Acontece que, às vezes, as coisas ficam dormentes durante um certo tempo, né? Mas, de repente, eu volto à tona. É um projeto que está arquivado, mas não em termos definitivos.

OE – Na última vez que conversamos, o senhor me disse que estava com problemas de saúde..Como está a sua saúde?

CA – Não está boa. Eu, por exemplo, vou ser operado na próxima quarta-feira. A dúvida é saber onde vou ser operado. Se em Guimarães, no Porto ou em Coimbra.

OE – O senhor pode dizer qual é a doença?

CA – Eu tenho aneurisma abdominal…é uma coisa séria. Até que essa operação ocorra, se eu sobreviver…

OE – Vai sobreviver, sim…

CA – Aí vou fazer novos projetos, reciclar minha vida. Grande parte da minha saúde foi abalada por uma série de acontecimentos,

OE – Qual é a sua idade?

CA – Estou com 70 anos.

OE – Bem vividos?

CA – Bem vividos, embora nos últimos 10 anos tenham sido pessimamente vividos.

OE – O senhor recebe sempre visitas de acreanos aqui?

CA – Já recebi. Tive o prazer de ter em minha casa, por 21 dias, uma das pessoas que eu mais prezo, que é o professor Geraldo Mesquita (ex-gov do Acre já falecido). Foram os 20 dias mais alegres que eu passei nos últimos 10 anos.

OE – O que vocês fizeram juntos?

CA – Fizemos tudo. O Mesquita é um intelectual. Um homem apaixonado pela história. Nós líamos os Lusíadas, nós íamos visitar os lugares históricos..Conversávamos 99% dos assuntos sobre o Acre. O Acre atual e o antigo, que era dele e meu. Era, fundamentalmente, o que fazíamos. Às vezes, passávamos o dia inteiro em casa discutindo coisas do Acre. Divergindo muitas vezes. Concordando outras tantas.

OE – O senhor está sempre atualizado com as notícias que acontecem no Acre? O senhor lê O Estado?

CA – Vejo pelos jornais e, com destaque, pelo jornal O Estado. Porque, como é que se diz, vocês dão notícias on-line e eu vou acompanhando muitas das coisas do Acre pelo O Estado na internet.

OE – O senhor tem dito que gosta do nosso jornal. Por quê?

CA – Gosto. Não é porque estou falando com você, até porque se não gostasse eu diria. Vocês são ponderados, equilibrados, fazem um jornalismo sério. Sem subserviências condenáveis. Que tem, digamos, a sua linha, sua concepção, seus valores, que são normais, mas acima de tudo eu os acho sério. E isso me parece mais importante.

OE – O senhor topa escrever para O Estado, mesmo do ‘exílio’, e contar as coisas que sabe e conhece do Acre?

CA – Eu fico com receio de fazê-lo, viu, Braña?

OE – Por que?

CA – Porque, digamos, as pessoas que me conhecem, que privaram comigo durante quase 40 anos poderiam até valorizar o que eu eventualmente escreveria, aceitando ou não, concordando ou não, mas as novas gerações não têm a menor ideia de quem é esse tal de Abrantes. Quando eu apareço nos jornais do Acre é de forma negativa.

OE – Nós conversávamos antes de começar a gravar e o senhor demonstra, quando o assunto é o governo Flaviano Melo, que o senhor foi secretário, uma série de reações tipo ressentimentos, tristeza, revolta etc etc…Eu pergunto: como o senhor tem vivido esses anos todos quando o assunto Flávio-Nogueira, a conta-fantasma que roubava dinheiro da população atrasando o pagamento do funcionalismo, volta e meia entra no seu pensamento?

CA – De todos esses sentimentos que você se referiu eu cito um que ficou de forma mais bem acentuada: que é o sentimento de saudade (neste momento Abrantes começa a chorar. Acende um cigarro. Estamos sentados em cadeiras da estação Campanhã, na cidade do Porto. Passavam das 13h (8 da manhã no Acre)

Fim da primeira parte.

Segunda parte aqui

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