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Dorrit Harazim, em O Globo – oestadoacre reproduz este texto do jornal fluminense por entender que é necessário socializar informações e análises qualificadas que possam ajudar compreender melhor o que acontece no Brasil
Por razões industriais, o texto de domingo desta coluna é finalizado com dois dias de antecedência. Antes, portanto, de conhecermos a dimensão das passeatas agendadas para este sábado (ontem) em homenagem ao refugiado congolês Moïse Mugenyi Kabagambe. A troco de nada, o jovem negro fora abatido como animal por três indivíduos que também trabalhavam sem registro nas areias idílicas da Barra da Tijuca. As circunstâncias da curta vida de Moïse (24 anos), narradas pela mãe, somadas à agonizante morte a pauladas do filho, cobriram o país de uma vergonha nova: testemunhar, através das imagens captadas em vídeo, a execução do jovem entregue aos cuidados do Estado, como refugiado de guerra. Dói, humilha, desespera, abate. E impulsiona o instinto represado de sair do confinamento cívico, de se fazer ouvir, assinar manifestos, ir às ruas, gritar até perder o fôlego.
Muito bem. E depois? Nada mudará se, de volta à rotina, não percebermos os tantos Moïses, imigrados ou nacionais, com quem convivemos sem interesse, cruzamos na rua, no trânsito, no trabalho e na vida, num simulacro de sociedade. Sociedade violentamente racista. A congolesa Ivone Lay, mãe do filho linchado, descobriu tarde demais o que todo negro brasileiro aprende já no ventre da mãe: que um jovem negro é morto no Brasil a cada 23 minutos, segundo o Atlas da Violência 2021. Talvez seja da educadora Yvonne Bezerra de Mello, em entrevista à jornalista Ruth de Aquino no GLOBO, a constatação mais crua da realidade atual: “A civilização abandonou o Brasil. É um processo de desconstrução do ser humano no coletivo”. Em três semanas deste verão carioca de 2022, houve 12 tentativas de linchamento de suspeitos de assalto nas areias da Zona Sul.
Para refugiados africanos, haitianos e outros desvalidos à deriva, soa atraente a fantasia de um paraíso tropical tolerante e acolhedor chamado Brasil, de língua única, sem massacres étnicos nem guerras religiosas. O guineense Luís Fernandes Junior veio estudar Pedagogia na Bahia em 2018, apesar de alertado sobre a violência brasileira por sua família na Guiné-Bissau que assiste ao programa policialesco “Cidade alerta”, da TV Record. Em dezembro, foi retirado do banheiro de um shopping por um segurança, acusado de ter roubado a mochila que acabara de comprar na loja Zara. “Fui perceber o racismo aqui no Brasil. Nunca havia vivenciado isso… A forma de me abordar foi desumana”, contou à Folha de S.Paulo, em terno depoimento sobre raça e ancestralidade.
-Se fizermos as contas das montanhas de páginas de jornal e de noticiário televisivo que as mídias dedicam a picuinhas do chamado Centrão, cabe perguntar se isso é de real interesse da população. E as alianças e mésalliances partidárias, então? Elas são destrinchadas em minúcias, sempre distantes do dia a dia do cidadão cansado
Enquanto não for dada visibilidade máxima a casos miúdos ou extremos, sempre perversos e nascidos do mesmo caldo de exclusão social do negro, uma mudança estrutural da sociedade brasileira levará outros 134 anos. Se fizermos as contas das montanhas de páginas de jornal e de noticiário televisivo que as mídias dedicam a picuinhas do chamado Centrão, cabe perguntar se isso é de real interesse da população. E as alianças e mésalliances partidárias, então? Elas são destrinchadas em minúcias, sempre distantes do dia a dia do cidadão cansado. Este mesmo cidadão entende bem melhor o relato-desabafo feito dias atrás pelo tenor lírico Jean William para a jornalista Mônica Bergamo. William fazia a travessia na balsa Santos-Guarujá sentado no banco do motorista do seu super Jeep, quando foi abordado por um PM, que lhe apontava uma arma. Intimado a descer com as mãos para o alto, foi perguntado aos gritos se era o proprietário do veículo de luxo, se tinha ficha na polícia, se portava drogas. Dentre os vários outros motoristas na balsa, só ele foi pinçado e tratado como bandido à vista de todos. William é negro.
A literatura brasileira mais recente parece estar léguas à frente das mídias profissionais no enfrentamento da tragédia brasileira. O Brasil ainda pode ser considerado uma nação, quando ancorado no racismo estrutural e na violência estimulada? O que levou um sargento da Marinha a matar com três tiros disparados do seu automóvel um vizinho de condomínio, quarta-feira, em São Gonçalo, Região Metropolitana do Rio? “A localidade aqui é perigosa, costuma ter assaltante”, explicou o atirador. Durval Teófilo Filho voltava do trabalho em Niterói, onde era repositor de estoque. Era negro, estava a pé, e mexera na mochila que trazia no peito para pegar as chaves do portão. Bastou para morrer.
No próximo dia 14 de março completam-se quatro anos do traumático assassinato da vereadora Marielle Franco (PSOL). Até hoje, as investigações não chegaram à identidade do mandante do crime, nem à motivação da execução da parlamentar. Em compensação, esta semana assumiu um novo titular na Delegacia de Homicídios da Capital (DHC), encarregada da apuração. É o quinto titular desde o ataque no qual também morreu metralhado o motorista de Marielle, Anderson Gomes.
O negro brasileiro não é refugiado nem asilado, como os que chegam de terras estrangeiras em busca de uma nova vida. O negro brasileiro se sabe excluído em seu próprio país, e não há democracia possível num contexto destes. Já passou da hora de o Congresso e o Poder Judiciário assumirem sua responsabilidade na construção de uma sociedade menos vil. Do Executivo atual é inútil esperar algo, só o pior.
Por Dorrit Harazim