oestadoacre reproduz o artigo de Vladimir Aras, mestre em Direito Público da UFPE.
No próximo dia 20 de março terá início no STJ (Superior Tribunal de Justiça) o julgamento que definirá o destino de Robinho, condenado pela Justiça italiana pelo estupro coletivo de uma mulher migrante. Escrevi sobre o tema no texto abaixo:
ARAS, Vladimir. O reconhecimento de sentenças penais estrangeiras no Brasil: os casos Robinho, Falco e Narbondo. Revista do Ministério Público do Estado do Rio Grande do Sul, v. 93, p. 161–194, jun. 2023.
a) rejeitar a sentença italiana;
b) mandar cumpri-la.Na primeira hipótese, a ação penal teria de recomeçar do zero no Brasil. A vítima seria exposta aos mesmos sofrimentos mais uma vez, com uma desnecessária revitimização.
Por quantos anos tramitaria este novo processo pelas várias instâncias do Judiciário brasileiro?
O risco de prescrição se assomaria. Além disso, esta nova persecução constituiria um bis in idem em desfavor de quem já foi julgado e condenado pelos mesmos fatos.
Sobre este ponto, em 2019, ao julgar o HC 171.118/SP, a 2ª Turma do STF (Supremo Tribunal Federal) decidiu ser vedada a dupla persecução penal, por violar o art. 14.7 do Pacto Internacional sobre Direitos Civis e Políticos e o artigo 8.4 da Convenção Americana de Direitos Humanos:
“Proibição de o Estado brasileiro instaurar persecução penal fundada nos mesmos fatos de ação penal já transitada em julgado sob a jurisdição de outro Estado.”
O Habeas Corpus foi concedido para trancar o processo penal brasileiro.
Na segunda hipótese, prevista nos tratados internacionais e, no caso concreto, também regulada pelos arts. 103 a 105 da Lei 13.445/2017 (Lei de Migração), Robinho cumpriria no Brasil a pena que lhe foi imposta na Itália. O bis in idem não ocorreria; a mulher estuprada não seria revitimizada; as leis penais dos dois países seriam respeitadas e cumpridas.
Para completar, o Estado brasileiro seria fiel ao conteúdo do da transferência de execução, à finalidade precípua deste instituto e à prática internacional na matéria.
A possibilidade de fazer cumprir uma decisão penal estrangeira no Brasil não é novidade entre nós, uma vez que brasileiros condenados em Portugal foram submetidos ao cumprimento de suas penas aqui, por decisão monocrática da presidência do STJ.
A novidade agora é a sujeição da questão à Corte Especial do STJ, mediante recurso da defesa. Robinho teve ótimos advogados em Milão e foi condenado; tem excelentes advogados no Brasil, mas a balança da justiça não lhe favorece.
A decisão do STJ no caso Robinho servirá também de diretriz para o caso Falco, condenado pelo mesmo crime, e influenciará o cumprimento (ou não) de outras decisões penais estrangeiras no Brasil, a exemplo do caso Narbondo, condenado por homicídios cometidos durante a ditadura militar argentina.
Em suma, o STJ decidirá se o instituto da transferência de execução penal, conhecido na doutrina estrangeira como enforcement of foreign judgments, será válido no Brasil, como o é noutras democracias contemporâneas, ou se se tornará uma ferramenta inútil à cooperação internacional e aos interesses da justiça criminal.
De fato, a pretensão de aplicá-lo apenas a cidadãos estrangeiros condenados no exterior não faz o menor sentido, uma vez que cidadãos alienígenas sempre podem ser extraditados. Nestas hipóteses, a extradição é opção preferencial.A utilidade da transferência do cumprimento de condenações estrangeiras está exatamente em servir como alternativa à extradição, sempre que esta não for possível, por inextraditabilidade de nacionais, por exemplo.
A referência, no texto da lei, à extradição executória é facilmente explicável pelo fato de que só se pode pedir o cumprimento de uma sentença penal estrangeira se ela for exequível, isto é, se a condenação for definitiva.
Nestes casos é que se cogita de uma das duas espécies de extradição (a executória), por contraste à outra modalidade (extradição instrutória). Então, quando o legislador faz uso da expressão, está dizendo apenas que somente se executa uma sentença penal estrangeira no Brasil quando houver o trânsito em julgado da condenação.
Se o STJ firmar um precedente negativo no caso Robinho, veremos um efeito em cadeia, literalmente. Para aqui e além daqui a decisão do STJ mandará uma mensagem sobre o estado da cooperação internacional no Brasil, isto é, sobre se avançamos rumo à adoção mais ampla do princípio do reconhecimento mútuo ou se nos recolhemos e nos insulamos no biombo de uma soberania bodiniana, isto é, de uma concepção nacionalista da cooperação.
O Brasil já se beneficiou desse instrumento noutro caso de violência contra a mulher. Em 1987, Marcelo Bauer assassinou sua então namorada em Brasília. O réu fugiu e se abrigou na Alemanha, de onde não podia ser extraditado por ter dupla nacionalidade, teuto-brasileira.Condenado pelo tribunal do júri de Brasília pelo crime que hoje seria um feminicídio, Bauer ficou impune por 30 anos, vivendo na Europa, até que em 2017, graças ao trabalho do MP-DFT, da PGR e do DRCI, a sentença brasileira, que havia sido transferida à Alemanha começou a produzir efeitos e ele foi preso, estando a cumprir sua pena desde então.
Se o STJ negar o pedido de Roma para a execução da pena de Robinho no Brasil, não poderemos esperar que a Itália reconheça sentenças penais brasileiras, no sentido inverso, por falta de reciprocidade. O resultado seria a impunidade de crimes graves já decididos por sentença transitada em julgado no Brasil.
No caso The Antelope, julgado pela Suprema Corte dos Estados Unidos, em 1825, o Chief Justice John Marshall cunhou a célebre expressão “The courts of no country execute the penal laws of another”. De fato, os estados não executam nos seus territórios leis penais “estrangeiras”; fazem cumprir as suas próprias, inclusive os tratados internacionais pelos quais se obrigam.
Ao longo do século 20, firmou-se o ideal de que a justiça penal é um valor superior da humanidade. Foi quando vimos a criação dos primeiros tribunais penais internacionais e quando se formaram importantes regimes globais de proteção à pessoa humana, inclusive por meio do direito penal transnacional e por intermédio daquilo que Alexandra Huneeus chama de jurisdição quase-penal das cortes de direitos humanos.
Foi um desses tribunais, a Corte IDH, que fortaleceu a noção de que o acesso à justiça é uma cláusula de jus cogens, que beneficia a todos, inclusive as vítimas de crimes.
Uma perspectiva de gênero não pode faltar nesse julgamento no STJ, numa dimensão interseccional, pois além de ser mulher e economicamente hipossuficiente, a vítima estuprada era migrante na Itália na ocasião do evento e é agora estrangeira em relação à jurisdição brasileira, sem condições adequadas de se fazer ouvir pelo Tribunal.
Num contraditório justo, suas percepções e pretensões devem ser levadas em conta.
Diante da profusão de tratados e de inúmeras obrigações positivas de âmbito convencional, os estados já não resistem como outrora ao reconhecimento de sentenças penais estrangeiras.
Há um dever de cooperar para a tutela transnacional de direitos humanos, sob uma ótica da proibição da cooperação internacional deficiente. Está nas mãos dos 15 eminentes ministros da Corte Especial do STJ definir se a jurisdição brasileira é receptiva a essa forma muito especial de diálogo de cortes. Este é um intercâmbio efetivamente jurisdicional que é só possível entre Estados de Direito, como são a Itália e o Brasil.A velha xenofobia jurídica que nos fazia resistir a tudo que viesse de tribunais estrangeiros já não tem lugar num mundo sem fronteiras. Desde que tenham sido respeitados os direitos materiais e processuais do réu, uma condenação proferida por um Estado estrangeiro pode e deve ser reconhecida e cumprida noutro. São os ares da cooperação soprando as velas da civilização.