Fórum Brasileiro de Segurança Pública
Instituto Mãe Crioula
O conflito por territórios e pelo uso do solo é o principal eixo que estrutura as relações que produzem violência nos estados que compõem a Amazônia Legal. Essa é uma das principais conclusões da terceira edição do estudo “Cartografia das Violências na Amazônia”, elaborado pelo Fórum Brasileiro de Segurança Pública (FBSP) em parceria com o Instituto Mãe Crioula (IMC), e que analisou dados dos nove estados da Amazônia Legal (Acre, Amapá, Amazonas, Mato Grosso, Pará, Rondônia, Roraima, Tocantins e parte do Maranhão), composta por 772 municípios. A publicação destaca que a ação de facções ocupa um lugar central não apenas em função da dinâmica do narcotráfico, mas também em conexão com o avanço do desmatamento, de outros crimes ambientais e com disputas fundiárias. Isso se reflete nas estatísticas de violência da região e indica que é mais perigoso viver hoje na Amazônia Legal do que em outras regiões do país. Em 2023, houve 8.603 mortes violentas intencionais (homicídios dolosos, latrocínios, mortes decorrentes de intervenção policial e mortes de policiais) na região, uma taxa de 32,3 mortes para cada grupo de 100 mil habitantes, 41,5% maior do que a taxa brasileira, de 22,8 mortes para cada 100 mil habitantes.
“O conflito pela terra nessa área é atualmente regulado pelo crime. Esse controle se dá por meio de cadeias produtivas, entre elas a criação do gado em territórios da União usurpados por grileiros, a exploração ilegal da madeira, a pesca predatória e, principalmente, o garimpo em terras indígenas. Essa regulação do território, que ocorre de forma violenta e operada pelo crime, estrutura e conecta todas as principais atividades criminais da Amazônia Legal”, observa Renato Sérgio de Lima, diretor-presidente do FBSP.
Apesar de permanecer com taxas altas, a violência letal na região caiu nos últimos anos, segundo o estudo, com redução de 6,2% no triênio 2021-2023, acima da média nacional no mesmo período, de 4,6%. As dinâmicas entre os estados foram muito díspares. Entre 2022 e 2023, o Acre teve redução de 9,7% na taxa de violência letal, mas quando comparamos 2023 com 2021 o saldo é um crescimento de 9,2%. Já o Mato Grosso teve crescimento de 18,9% na taxa de violência letal entre 2021 e 2022 e aumento de 8,1% entre 2022 e 2023, de modo que entre 2021 e 2023 o crescimento chegou a 28,5%, o maior entre os estados que compõem a Amazônia Legal. A taxa mais alta de MVI por Estado no último ano na Amazônia e a mais elevada do país é a do Amapá, com 69,9 vítimas a cada 100 mil habitantes. Os únicos estados que mantiveram tendência de queda durante todo o período foram Amazonas, Maranhão e Roraima.
Entre 2021 e 2023, em 445 dos 772 municípios as taxas de MVI são mais elevadas do que as da média do país. No conjunto, as cidades da região apresentam uma taxa 42,4% superior ao dado do Brasil como um todo, ou seja: a redução da violência na região não chega a modificar sensivelmente o quadro, que continua alarmante. As cidades da Amazônia Legal em que as taxas de MVI são mais altas do que os números brasileiros concentram 66,8% da população da região e 83,7% de todos os assassinatos.
Facções na Amazônia
O trabalho identificou, em 2024, 260 municípios com presença de facções criminosas na região, acima do número de 178 cidades assim classificadas na edição do estudo em 2023. Ao mesmo tempo, a quantidade de facções presentes caiu de 22, em 2023, para 19, em 2024. O estudo detectou aumento da presença e da influência exercidas pelo Comando Vermelho na Amazônia Legal. Entre as 260 cidades com atividades de facções, 176 são dominadas por um único grupo criminoso – em 130, essa hegemonia pertence ao Comando Vermelho (CV); em 28, ao Primeiro Comando da Capital (PCC). Em 84 dessas 260 cidades verificam-se disputas ou coexistência entre dois grupos ou mais.
A publicação traz a descrição dos grupos por estado, indicando cada território dominado por uma organização criminosa e quais são os municípios disputados por duas ou mais facções. No Amazonas, por exemplo, há 21 municípios com presença de facções, sendo que em 13 deles há apenas um grupo criminoso atuando: Comando Vermelho ou Piratas do Solimões. Em Roraima, que tem sido notícia devido à desintrusão na TI Yanomami, há queda de violência de uma forma geral.
No estado, há a experiência da Casa de Governo, estrutura criada pelo Governo Federal para coordenar e monitorar presencialmente a execução do Plano de Desintrusão e de Enfrentamento da Crise Humanitária na Terra Indígena Yanomami. Nesse contexto, o FBSP obteve, via Lei de Acesso à Informação (LAI), números oficiais a respeito de equipamentos apreendidos na operação. Houve a apreensão de 25 embarcações, por exemplo, e de duas aeronaves. Outras 61 embarcações foram destruídas, bem como 42 pistas de pouso. Há também um box no estudo que explica como se deu a penetração de membros do PCC no local, que dominaram áreas de garimpo ilegal de ouro, agravando de maneira acentuada a violência e as condições de vida da população indígena local.
Violência contra a mulher
Os dados de homicídios de mulheres e feminicídios na Amazônia Legal apresentaram redução acima da média nacional entre 2022 e 2023. Em relação ao total de homicídios, em números absolutos foram 691 mulheres vítimas, em 2022, e 629 em 2023. No caso dos feminicídios, o número manteve-se praticamente estável, passando de 236 vítimas, em 2022, para 228 no ano seguinte, com taxas acima da média nacional – de 1,7 por grupo de 100 mil mulheres, 21,4% acima da média nacional. E a hipótese de subnotificação se robustece à medida que alguns dados são examinados. Enquanto no Maranhão e no Acre, respectivamente, 68,3% e 66,7% de todos os assassinatos de mulheres foram computados como feminicídio, no Amazonas apenas 18,3% dos casos foram classificados dessa maneira.
Outro apontamento importante do estudo diz respeito à conexão entre os vetores de desmatamento e os números da violência da região. “Há uma correlação geográfica entre, por exemplo, a abertura de estradas, a concomitante intensificação das atividades econômicas que mais desmatam nessas áreas e o crescimento dos indicadores da violência”, afirma Renato Sérgio de Lima, diretor-presidente do FBSP.
Faroeste Amazônico
O FBSP traçou também cruzamentos entre o número de conflitos fundiários, a partir de dados da Comissão Pastoral da Terra (CPT), e as taxas de desmatamento, calculadas pelo Ibama (Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais).
“Em que pese a ação das facções criminosas, que é mais recente, existe um histórico de conflitos fundiários na Amazônia Legal que não podemos perder de vista. Para que se entendam as dinâmicas criminais na região, há que se levar em consideração que a ação de grileiros, que mais tarde vai redundar em avanço das monoculturas, expansão da fronteira agropecuária e ampliação do garimpo, está inserida na mesma lógica da disputa por rotas de escoamento do narcotráfico. Nesse sentido, é sempre sobre controle territorial armado que estamos falando”, explica Aiala Colares Couto, diretor-presidente do Instituto Mãe Crioula e professor da Universidade Estadual do Pará.
Ao cruzar dados, o estudo se detém sobre a área em que se retrata o chamado “Faroeste Amazônico”, na tríplice divisa entre Amazonas, Acre e Rondônia, que compreende boa parte dos municípios mais desmatados de toda a região. A comparação entre a relação dos 10 municípios mais desmatados (Ibama) e das cidades com mais conflitos fundiários (CPT) inclui localidades como Lábrea e Apuí (AM).
Violência em cidades menores
O FBSP elaborou ainda a lista dos 50 municípios amazônicos mais violentos no triênio, isto é, municípios com as maiores taxas trienais de Mortes Violentas Intencionais. Alguns são muito pequenos, com menos de dez mil habitantes. Fazem parte da tabela as taxas de MVIs por mil habitantes, a média trienal e a variação no período. Foram cruzados dados, produzidos pela CPT, relacionados a municípios nos quais são notórias as disputas entre facções. Roraima, mesmo com melhora dos números do estado, apresenta dois municípios nessa lista: Alto Alegre e Mucajaí. Localizado na Terra Indígena Yanomami (TIY), Alto Alegre teve um crescimento muito expressivo da violência. Estratégico por conta do garimpo, o município foi palco de 29 conflitos fundiários, segundo a CPT. Nessa listagem, predominam os municípios rurais. Apenas uma capital, Macapá, está entre as 50 cidades mais violentas da região.
Muitas Amazônias
A realidade de um estado da região pode ser radicalmente diversa de outra unidade vizinha da Federação. Assim, se no Amazonas o ambiente foi “pacificado” com a extinção da Família do Norte (FDN), no vizinho Mato Grosso, mais especificamente na região de fronteira, objeto de intensa disputa de facções, há o agravamento da violência, decorrência do surgimento de uma dissidência do CV, a chamada Tropa do Castelar. Em alguns dos municípios dominados por essa facção, integrada por criminosos muito jovens e, em média, mais violentos, os indicadores de MVI’s aumentaram.
Outra questão que o FBSP apurou é a porcentagem de terras pertencentes à União na região. “Essa informação é importante: quando temos de cobrar o estado para que tome algum tipo de providência, a qual esfera estamos nos referindo? Em muitos casos, a responsabilidade cabe à União”, afirma Samira Bueno, diretora-executiva do FBSP.
Para extrair esses números, os pesquisadores acessaram dados do CAR (Cadastro Ambiental Rural), que contém identificação de supostos proprietários de terras, com nomes e CPFs. Em muitos casos, tais “propriedades” estão localizadas em áreas de conservação ambiental e em terras indígenas. O estudo identificou que há sobreposição de propriedades em terras indígenas em 8.610 imóveis rurais. Em áreas de conservação ambientais, há mais de 11 mil propriedades registradas.
E há outro tipo de padrão de violência analisado no estudo: aquele que se propaga após a realização de uma grande obra, como uma estrada ou uma hidrelétrica, ou que decorra da execução de projeto de extração de algum bem mineral, o que atrai trabalhadores forasteiros ao local. “É necessário que sejam pensados projetos que mitiguem impactos dessas obras na segurança pública, a exemplo do que existe na área ambiental. Há estudos de impacto socioambiental, mas não se avaliam os impactos na segurança pública”, afirma a diretora-executiva. “E essas obras acarretam problemas de diversas naturezas”, acrescenta.
Crime organizado e lavagem de dinheiro na Amazônia
Este Cartografias demonstrou que o potencial de enfrentamento ao crime organizado com a utilização de inteligência financeira tem sido ampliado, dado o crescimento do volume das comunicações e dos relatórios do Coaf no Brasil, e na Amazônia em particular. Em 2023, o número de relatórios de inteligência financeira associados às UF da Amazônia Legal foi 2,3 vezes superior à média do Brasil, quando ponderado pela atividade econômica dos estados, e esse volume cresceu 55,5% a mais do que o restante do país entre 2022 e 2023. É possível que essa intensificação acompanhe a disseminação do fenômeno do crime organizado faccional/de base prisional, que se intensificou nos últimos anos, conforme vem sendo documentado pelo Cartografias das Violências na Amazônia desde 2020. Todavia, a chave investigativa não tem explorado as conexões entre facções de base prisional, controle e uso ilegal da terra e crimes ambientais.
Os crimes ambientais perderam representatividade no cômputo geral dos ilícitos entre 2020 e 2023, caindo de 2,9% para 2,1% do total de comunicações do Coaf, enquanto Tráfico de drogas subiu de 25,4% para 31,3% do total. A Avaliação Nacional de Riscos para Lavagem de Dinheiro estimou que a ameaça do Tráfico de drogas e do Primeiro Comando da Capital (PCC) são de intensidade muito alta, enquanto o Comando Vermelho e a Extração ilegal de recursos naturais e minerais foram consideradas ameaças de alta intensidade.
Mudanças regulatórias na cadeia do ouro
Uma análise da arrecadação da Compensação Financeira pela Extração Mineral (CFEM), tributo que incide no momento da geração de nota fiscal da venda do ouro, no período 2018-2023, demonstra de forma eloquente o crescimento da exploração mineral e, ao mesmo tempo, o chamado “esquentamento” de ouro ilegal. No entanto, fica evidente que há uma mudança de cenário a partir de 2022.
Um dos principais pontos de vulnerabilidade das normas a respeito do ouro foi a chamada “presunção de boa-fé” para emissão da nota fiscal, que foi derrubada pelo Supremo Tribunal Federal em 2023. Até então, essa regra permitia a emissão de nota fiscal de ouro ilegal. Além do fim da presunção de boa-fé na declaração de origem do ouro para emissão de nota fiscal, outra importante medida adotada em 2023 para aprimorar o controle e a fiscalização sobre a produção aurífera foi o estabelecimento da Nota Fiscal Eletrônica do Ouro Ativo Financeiro (NF-e Ouro Ativo Financeiro). A norma foi instituída pela Receita Federal.
O período analisado apresenta momentos distintos: entre 2018 e 2023, a arrecadação da CFEM mais que dobrou no Brasil (variação de 122,8%), crescendo ainda mais nos estados da Amazônia Legal, com variação de 170,5%. Foram R$ 316,6 milhões arrecadados no Brasil e R$ 116,8 milhões na Amazônia, que representa cerca de um terço da arrecadação brasileira. O pico da série observada é o ano de 2021, momento em que a Amazônia chegou a ser responsável por 48,9% da arrecadação de CFEM do país inteiro, evidenciando o já conhecido momento em que a extração mineral (inclusive ilegal) estava sendo incentivada por autoridades políticas de forma irresponsável. O estado do Pará arrecadou R$ 86,6 milhões de CFEM em 2021 e é considerado um dos principais polos de esquentamento de ouro, sobretudo aquele extraído em Terras Indígenas de Roraima. Desde 2022, no entanto, a arrecadação vem caindo. A variação negativa foi de 12,1% no Brasil e chegou à queda de 31,5% na Amazônia Legal em 2023. É notável a queda no Pará, estado que apresentou crescimento de 144,7% no período 2018-2023 e cuja arrecadação caiu pela metade entre 2022 e 2023.
A queda na arrecadação precisa ser analisada em paralelo com a intensidade da atividade minerária. As mudanças regulatórias não costumam produzir resultados tão mensuráveis em pouco tempo de observação, mas especialistas têm apontado que a relação entre arrecadação de tributo e exploração mineral sugere que estão em ascensão novas formas de esquentamento do ouro ilegal e mesmo o aumento do contrabando (quando o ouro é comercializado sem passar pela declaração). Fato é, todavia, que as mudanças regulatórias recentes colocaram mais obstáculos ao esquentamento do ouro no início de sua cadeia produtiva.
Força Integrada de Combate ao Crime Organizado (FICCO)
A FICCO, por meio de suas 33 bases, apresenta indícios de ser uma forma promissora para a promoção de um enfrentamento mais qualificado às organizações criminosas no país, sobretudo por possibilitar a articulação institucional entre Polícia Federal e as polícias estaduais, potencializando a vocação/expertise da PF ao conhecimento local dos órgãos estaduais. Além disso, a coordenação geral das FICCO por parte da PF também possibilita uma visão mais abrangente, estratégica e nacional acerca dessas dinâmicas criminais mais organizadas.
Chamou a atenção, no entanto, a concentração de operações nos estados da Bahia e do Rio de Janeiro, não ficando evidentes os possíveis motivos da sobrerrepresentação destas UF no total Brasil, à frente, por exemplo, de estados como SP, ou ainda a inexistência de operações no Paraná.
Somadas, as operações na Bahia e no Rio de Janeiro correspondem a 27,1% das operações FICCO no Brasil. Minas Gerais (22 operações) é o terceiro estado com mais operações no país. O Pará (20 operações) é o primeiro estado da Amazônia Legal em quantidade de operações da FICCO. Amapá (16 operações), Acre (15 operações), Tocantins (12 operações) e Rondônia (12 operações) vêm na sequência. Para completar, Roraima (8 operações), Mato Grosso (5 operações), Maranhão (5 operações, considerando o estado todo) e Amazonas (2 operações deflagradas, não havendo operações em andamento). As operações FICCO em UF da Amazônia Legal corresponderam a 28,3% do total Brasil. São Paulo contou com apenas 4 operações e não foram registradas operações no Paraná.
A FICCO tem enfocado a atuação das facções criminosas de base prisional. No entanto, como visto em operação FICCO no Mato Grosso, as operações na Amazônia Legal têm o potencial de desvelar as conexões das facções criminosas entre tráfico de drogas e crimes ambientais. Este modelo poderia ser ampliado para a atuação de outros tipos de organizações criminosas (não apenas as facções criminosas de base prisional) atuantes na região, operando crimes ambientais e grilagem de terras, dinâmicas que também são produtoras de violência.