Por Maria Helena Machado
Dona Lourdes não sabia ler nem escrever, mas, em Cruzeiro do Sul, era a pessoa mais sábia que já conheci. Morava numa casa de madeira azul, com as janelas sempre abertas, porque dizia que o vento levava as preces embora. Nascida na beira do Juruá, tinha aprendido desde cedo que a vida, como o rio, corre…

“A gente não escolhe em que página da história nasce”, dizia ela, com o sorriso meio torto. “Se tivesse nascido lá do outro lado do mundo, talvez minha mãe me ensinasse a acender incenso em vez de rezar pra Nossa Senhora.”
Naquela casa, o tempo corria devagar. Uma vez, perguntei à Dona Lourdes se ela acreditava em Deus. Ela olhou para o céu, como se esperasse a resposta, e disse:
“Menina, acreditar não é questão de escolha. Mesmo quando eu digo que não, minha alma responde que sim. Deus está aqui, no vento, no silêncio da noite, e até no barulho dos bichos.”
Era a mesma resposta que eu tinha ouvido de Farid, um comerciante libanês que vendia tecidos na feira da cidade. Ele dizia que Deus era um viajante sem rosto e que os homens, em sua pressa, davam nomes diferentes ao mesmo caminho. Em vez de rezar o terço, ele se ajoelhava voltado para Meca, cinco vezes por dia. Mesmo na sua lojinha, Farid encontrava o seu silêncio.
“Vocês chamam de Nossa Senhora. Eu chamo de Alá. No fundo, tudo é gratidão”, ele me disse certa vez…
Há também Mei, uma moça que conheci numa viagem. Vinda do Japão, ela sorria com a leveza de quem carrega pouco. Mei não falava muito, mas me entregou um origami de tsuru, um passarinho feito com dobraduras.
“É uma oração”, explicou. “Nós acreditamos que ele carrega nossos desejos ao céu.”
Quando penso em Dona Lourdes, Farid e Mei, me vem a sensação de que a fé é mesmo uma casa sem endereço. Uma casa onde o vento passa e ninguém se importa com a cor das paredes ou o nome que dá ao Pai. Porque, no fim das contas, estamos todos em busca de algo: um silêncio, uma resposta, um sentido.
Hoje, quando me pego afirmando que sou ateu, lembro-me de Dona Lourdes: “Mesmo quando a gente diz que não, a alma responde que sim”. Talvez ela estivesse certa. Talvez Deus não more numa igreja, num templo ou numa mesquita. Talvez Ele more dentro do rio, do vento, ou da gente mesma.
E talvez seja por isso que a vida, com todos os seus caminhos tortos, sempre acaba levando a casa do Pai.