Mâncio Cordeiro resolveu falar. Depois de muita insistência, Cordeiro atendeu à equipe do Acre Economia para uma conversa. Falou alguns assuntos e se negou a falar de outros. Sobre a mesa, a conversa sobre a capacidade de endividamento do Estado, reajuste de salários do funcionalismo, comércio eletrônico e concentração de renda teve, em alguns momentos, tom de desabafo.
Com um currículo quase totalmente vinculado às finanças públicas, Cordeiro também acumulou uma passagem na presidência do Banco da Amazônia. Do período em que foi secretário de Finanças do então prefeito de Rio Branco, Jorge Viana, ao posto de secretário de Estado de Fazenda, ele acumula alguns desafetos. Os sindicalistas são exemplo. Sem contar os colegas do paço que, com dentes apertados, sempre reclamam do perfil ‘mão fechada’.
Talvez tenha sido exatamente este perfil o aliado do projeto político da Frente Popular do Acre que foi capaz de tornar a dívida de hoje duas vezes menor da que foi assumida no distante janeiro de 1999.
Quais argumentos o senhor apresenta para defender a idéia de que o Acre tem condições de honrar com os empréstimos feitos nos últimos doze anos?
Mâncio Cordeiro – O Acre é um dos Estados que tem as finanças públicas mais equilibradas do país. Do ponto de vista fiscal, é um dos poucos Estados que tem as finanças equilibradas: nós cumprimos a Lei de Responsabilidade Fiscal em relação ao Pessoal, em relação à Saúde, em relação à Educação. Cumprimos todas as regras. Estamos honrando todas nossas dívidas dentro dos contratos. A maioria dos Estados paga ‘limite’. O que é isso? É quando você não consegue honrar todos os seus contratos… aí tem um limite máximo de dívida que você paga. Exemplo: vamos supor que os teus contratos dariam 20% da tua receita. É impossível um Estado pagar 20%. Aí o que acontece? Você paga um limite máximo de 13% e o restante vai virando dívida para vencer daqui a um tempo. O que eu estou falando é que o Estado do Acre paga limite contra-tual. Eu tenho os meus contratos, e eu honro os meus contratos.
Se não pegássemos mais nenhum empréstimo, estaríamos endividados até quando?
Mâncio Cordeiro – São 10… 15 anos. São os prazos em que são feitas as operações de crédito. Esse prazo diz respeito a todas as dívidas do Estado. São dívidas com o INSS, que foram financiadas; são dívidas com as Cohabs, que foram refinanciadas; são dívidas relativas à Sanacre; dívida do Banacre; Banco Mundial; BID; BNDES.
Mas ainda não foi apresentada nenhuma defesa técnica de que o Estado tem condições de honrar com as dívidas.
Mâncio Cordeiro – Eu tenho aqui alguns dados a respeito de endividamento que é para acabarmos, de uma vez por todas, com esse lenga lenga de que ‘nós estamos endividando o Estado do Acre de forma irresponsável’. Eu trabalhei com os dados até 31 de dezembro de 2010 que é para ser um prazo ‘fechado’. Depois dessa data, não contratamos nenhuma outra operação. Se eu pegar o estoque da dívida… vamos voltar, portanto, a 31 de dezembro de 1998. Nós assumimos em 1º de janeiro de 1999. Em dezembro de 1998, o estoque da dívida era de 549 milhões de reais. Com a dívida do Banacre de 131 milhões , esse montante foi para, aproximadamente, 680 milhões de reais.
Atualizado, esse valor subiria para quanto?
Mâncio Cordeiro– Subiria para 2 bilhões e 50 milhões de reais sem juros. Durante todo esse tempo pegamos empréstimo na Caixa Econômica, BNDES, Bird[Banco Mundial], BID [Banco Interamericano de Desenvolvimento]… nós pegamos dinheiro no PEF durante a ‘crise econômica’ [O PEF foi o Programa Especial de Financiamento oferecido pelo governo brasileiro para os Estados se estruturarem financeiramente durante a crise norteamericana de 2008]. Então, tudo o que nós tomamos emprestado, desde janeiro de 1999 até dezembro de 2010, tirando o que já pagamos, faz com que nós tenhamos uma dívida consolidada hoje de 1 bilhão 746 milhões de reais.
[silêncio] A dívida diminuiu?
Mâncio Cordeiro -Você está achando difícil de acreditar, não é?
É.
Mâncio Cordeiro – A dívida do Acre em 31 de dezembro de 2010 é menor do que a dívida que eu tinha em 1º de janeiro de 1999, atualizada.
O que explica isso?
Mâncio Cordeiro – Durante esse período, eu paguei mais de 1 bilhão 250 milhões de reais. Em 1999, nós pagamos só a amortização da dívida e, de lá pra cá, viemos pagando… e pagamos esse valor sem recebermos financiamento de igual grandeza.
Mas, como é que essa matemática se fecha?
Mâncio Cordeiro – Se eu somar todos os empréstimos que eu fiz até 31 de dezembro de 2010 dá um valor menor do que eu paguei de dívida. O ‘pessoal’ fala muito. O ‘pessoal’ mente muito. E tem mais: eu posso me endividar até o dobro da minha Receita Corrente Líquida [a RCL do Acre, de acordo com o balanço oficial, foi de, aproximadamente,2 bilhões 649 milhões em 2010]. O Estado do Acre, portanto, de acordo com a lei, pode se endividar em 5 bilhões 297 milhões. Mas nós só estamos endividados em 1 bilhão 746 milhões. A resolução 4046 do Senado me autoriza ao endividamento em até duas vezes o valor da Receita Corrente Líquida. Então, esse negócio de dizer que o ‘Estado tá isso… tá aquilo’ é falácia. É falácia! É quem quer conversar muito sem conhecer. Esses dados estão no balanço. Estão no Tribunal de Contas, na Assembleia Legislativa, no Portal da Transparência, foi publicado no Diário Oficial.
Como fatores políticos podem atrapalhar esse processo de sanidade das contas públicas?
Mâncio Cordeiro– Bom… a não ser que o camarada meta os pés pelas mãos. Eu não quero avaliar aqui o que outra pessoa pode fazer no meu lugar. Por exemplo: se o próximo governador ou o próximo secretário de Fazenda fizer empréstimo de curtíssimo prazo, ele pode inviabilizar o Estado. Porque o Estado não tem capacidade de pagamento em curtíssimo prazo. Para todos os empréstimos que fazemos, é realizada uma análise rigorosa dos prazos para evitar que o Estado tenha um desembolso em um prazo mais curto e, com isso, possamos ter dificuldade de caixa. Agora, é bom que se diga: a nossa finança é uma finança que anda no equilíbrio. Ela anda no fio. Nós não guardamos dinheiro para o ano seguinte. A gente trabalha dentro do limite permitido, mas sempre no limite possível. Não sobra dinheiro de um ano para o outro porque a gente planeja corretamente o que vamos fazer naquele ano. Não poupa, mas gasta o que o governo tem que gastar. Nós pagamos mais dívidas do que recebemos.
Existe alguma diferença na dívida herdada em 1999 da que existe atualmente?
Mâncio Cordeiro – Sim. Há. Em 1999, eu tinha mais de 1,5 da minha Receita Corrente Líquida de endividamento. Agora, eu só tenho 0,8. [Traduzindo: antes de 1999, a Receita do Estado era praticamente toda comprometida com dívidas. Hoje, de acordo com Mâncio Cordeiro, não].
Se nós estamos no limiar da responsabilidade fiscal, como isso se harmoniza com o discurso de que o quarto mandato da Frente Popular deve ser dedicado à industrialização? Como dar sustentabilidade a isso se não há dinheiro de sobra no caixa para investimentos? Vamos continuar a recorrer a empréstimos?
Mâncio Cordeiro – Se você analisar, nós podemos tomar emprestado o mesmo valor que devemos. Agora, o Estado vai fazer isso? Acho que não vai. Primeiro porque não tem capacidade de gastar. O que o governador Tião Viana está fazendo agora ajuda na receita do Estado porque se o processo produtivo anda (sic), eu aumento a receita e, se eu aumento a receita, eu vou criar mais capacidade de pagamento e de endividamento. O que fizemos até hoje foi com a mais absoluta segurança e continuaremos a agir assim.
Quais empréstimos estão sendo articulados?
Mâncio Cordeiro – O BNDES , de 640 milhões; na Caixa Econômica de, aproximadamente, 120 milhões e 10 milhões, e outro de 240 milhões para o ProAcre II e BID II com, aproximadamente, 120 milhões de reais. Pode ser que nem contratemos todos, mas estão em andamento. Foi isso que eu te disse, que se contratarmos todos vamos ficar com 0,8 da nossa Receita comprometida.
Se o governo fala sobre esses empréstimos em andamento, como contra-argumentar que não há dinheiro para conceder aumento de salário para funcionalismo público?
Mâncio Cordeiro – Tudo que o Estado arrecadou foi transferido para os servidores públicos. Desde o segundo mandato do ex-governador Jorge Viana e o mandato do ex-governador Binho, a Receita Corrente cresceu 160%, aproximadamente. A folha de pagamento cresceu 159%. Portanto, os funcionários públicos não têm do que reclamar. Nós estamos gastando no limite o que podemos gastar com eles. Tudo o que cresceu foi transferido. Os funcionários públicos do Estado tiveram um ganho real de cerca de 60% nesse período de oito anos [de 2003 a 2010]. O ‘pessoal’ reclama de barriga cheia. Esse projeto foi um projeto muito bom para funcionário público. Eventualmente, pode ser que tenha uma ou outra carreira que não tenha tido o mesmo tipo de reajuste. Mas, no conjunto, a massa salarial cresceu.
Mas houve contratações…
Mâncio Cordeiro – Sim, mas o que saiu e o que entrou são números muito próximos.
Se o funcionalismo público está tão contemplado como se diz, como o senhor explica a renda no Acre ainda ser tão concentrada, já que a máquina estatal é a que mais emprega no Acre? Temos renda mais concentrada que Rondônia.
Mâncio Cordeiro – Justamente. Porque foram os funcionários públicos que levaram. A população mais pobre não ficou com essa renda.
Aumentar o salário do funcionalismo, no Acre, é sinônimo de concentrar renda, portanto.
Mâncio Cordeiro – Sim. Ajudou a concentrar renda. O Ipea [Instituto de Pesquisas Econômicas e Aplicadas da Universidade de São Paulo] fez uma análise e constatou que o Acre é o ‘paraíso do funcionário público’. Não é que a renda das pessoas mais pobres não cresceu. A renda das pessoas mais pobres melhorou, mas não melhorou na mesma proporção que melhorou a renda das pessoas mais abastadas. Nós ainda temos muita gente na pobreza. É preciso fazer com que a renda dessas pessoas melhore é incluí-las no mercado de trabalho. Nós melhoramos muito a situação de todos. Mas, a situação de algumas classes, de algumas categorias melhorou mais do que a de outros. E os funcionários públicos fazem parte de uma das classes privilegiadas.
O senhor poderia quantificar isso?
Mâncio Cordeiro – O crescimento da receita foi 161,47%. A evolução do gasto com pessoal foi de 159… quase 160%. A inflação acumulada no período foi de 56% e o crescimento real dos salários dos funcionários foi de 65%.
Em relação ao comércio eletrônico. Qual a lógica que existe em relação à cobrança do ICMS como vinha sendo feita pelo Governo do Acre e que a justiça considerou ilegal?
Mâncio Cordeiro – A legislação é clara. A regra do ICMS diz que o imposto deve ser repartido quando o produto é comprado por uma empresa e entra em outro Estado. A questão é a seguinte. A legislação que normatiza a cobrança do ICMS é de 1965. Ora, nessa época, não havia internet, não havia as facilidades que existem hoje, os estímulos ao consumo que temos atualmente. Qual a situação hoje? O mundo mudou e não mudou a regra.
Mas isso não justifica…
Mâncio Cordeiro – Qual é a discussão dos Estados que têm prejuízo com o comércio eletrônico? É que a regra tem que mudar porque o mundo mudou. E isso é um prejuízo grande para uma parte significativa dos Estados.
Quanto o Acre perde?
Mâncio Cordeiro – Não tenho isso quantificado porque depende de uma série de fatores, inclusive da sazonalidade das datas de maior consumo. Mas há Estados que afirmam ter mais de 30% de prejuízo. Independente da questão do tamanho do prejuízo, o que está em jogo é a questão da justiça fiscal. Não é justo hoje…da forma como o comércio está sendo feito que não seja pelo menos repartido como é o outro ICMS. Isso está na discussão da Reforma Tributária. A guerra fiscal só acaba se você estabelecer o princípio do destino. Com isso, não tem mais sentido a guerra fiscal porque você vai pagar o imposto para onde você vai consumir.
Não haveria o risco de diminuição do volume de consumo?
Mâncio Cordeiro – De jeito nenhum. O imposto é pago ou em um lugar ou em outro. Aí, alguns dizem que ‘os Estados pequenos vão ter prejuízos’… vão nada. O Acre, por exemplo, ganharia muito, se for cobrado no destino. Ganha muito porque o Acre exporta menos do que importa. Em relação ao comércio eletrônico, eu acho que é uma visão tacanha de quem acha que o imposto tem que ficar no Estado onde está comprando. Porque é o seguinte: o consumidor não foi lá comprar. Na prática, o consumidor está aqui. A compra foi feita aqui.
Mas a cobrança feita aqui não penaliza o consumidor acreano?
Mâncio Cordeiro – Não. O que os Estados estão buscando não é que deixe de acontecer o comércio eletrônico. Eles querem impedir é que o imposto venha pra cá.
O problema não é o imposto, que o consumidor de uma maneira ou de outra já paga. O problema é o destino…?
Mâncio Cordeiro – Isso. Se fica lá ou se fica aqui.O que está acontecendo aqui no Acre… eu nem sei por que as empresas estão se precavendo porque nós nem estamos adotando o critério de cobrança do comércio eletrônico. Há um convênio assinado que nós não incorporamos esse convênio à nossa legislação, mas mesmo assim estão entrando com recursos e o tribunal está dando ganho para as empresas. Uma decisão inócua porque nós não estamos cobrando de ninguém. O que nós queremos é resolver.
Então, vocês não vão nem recorrer da decisão do Tribunal de Justiça do Acre?
Mâncio Cordeiro – Não. Porque o que estou querendo resolver é a legislação. Temos que mudar a Constituição que, atualmente, diz que o ICMS do consumidor final é do Estado onde ele compra. Não temos que discutir do ponto de vista jurídico. A discussão não é jurídica. É tributária. Não é justo que, por uma questão de firula jurídica, o imposto fique com São Paulo, tirando imposto de um Estado pobre como o Acre. Os centros de distribuição estão nos Estados ricos. Não vemos centros de distribuição nos Estados pobres.
[publicado originalmente em agazeta neste domingo]