#castanha
oestadoacre reproduz matéria importante do Valor, Agronegócios, do dia 1608, sobre o mercado da castanha no mundo e de como a Bolívia domina a produção e a venda.
Quem manda na castanha-do-Brasil é a Bolívia
Uma gestão coletiva e fortalecida fez com que os produtores de castanha na Bolívia contornassem com sucesso um desafio comum
Por Daniela Chiaretti — De São Paulo
A castanha é um dos produtos mais icônicos da Amazônia. Não é produzido em nenhum outro lugar. Não existem plantações. Toda a castanha do mundo é coletada na floresta nativa do Brasil, da Bolívia e do Peru. No Brasil, chama-se castanha-do-Pará ou castanha-do-Brasil e é produzida em toda a Amazônia Legal. Em todos os idiomas, o Brasil é o país associado a este produto. Mas há uma surpresa: o mercado global gira em torno a US$ 240 milhões por ano e é a Bolívia que lidera, com 74% de participação. Depois vem o Peru. Hoje o Brasil tem apenas 11%. Como isso aconteceu?
As frases acima são do pesquisador Salo V. Coslovsky, professor de desenvolvimento econômico da Universidade de Nova York. Ele estuda o mercado de castanhas desde o começo da década passada.
É o autor do estudo “Como a Bolívia Dominou o Mercado Global de Castanha-do-Brasil?” que está sendo lançado. A análise faz parte do projeto Amazônia 2030, iniciativa de pesquisadores brasileiros para desenvolver um plano de desenvolvimento sustentável para a Amazônia brasileira.
“A castanha é um produto exclusivo da Amazônia que nunca foi domesticado.
Houve tentativas de se fazer plantações, mas nunca deu certo em nenhum volume significativo”, diz. Em 2001, o pesquisador notou que a Bolívia começava a passar à frente do Brasil e chegou, em 2019, ao domínio global.
As empresas bolivianas adotaram um modelo de gestão eficiente diante de um problema, diferente do caso brasileiro. É isso que Coslovsky descreve em seu estudo.
“Hoje o domínio da Bolívia é tão extenso que suas empresas compram castanhas cruas e com casca do Brasil por um valor irrisório, processam e as exportam como castanha sem casca por valores muito mais altos para o resto do mundo. Desde 2010, a Bolívia tem exportado entre US$ 1 milhão e US$ 2 milhões por ano de castanha sem casca para o próprio Brasil”, diz o sumário executivo do estudo.
O marco da mudança aconteceu em 1998. Naquele momento a União Europeia impôs padrões sanitários mais rigorosos para a importação de castanhas em função da contaminação por aflatoxinas que se originam em um fungo. “Alimentos ricos em proteínas são sujeitos a ter contaminação por aflatoxinas. O amendoim, o milho e o leite também podem ficar contaminados”, conta. Um dos tipos de aflatoxina é cancerígena.
Em 1998, a UE, o maior comprador de castanhas no mundo, apertou a regra sanitária. O limite para se vender castanha à Europa era de 20 partes por bilhão (ppb) para aflatoxinas totais, mas a partir de janeiro de 1999 passou a ser 4 ppb. “Nem os brasileiros nem os bolivianos sabiam como controlar a toxina”.
“O que aconteceu foi que as empresas brasileiras continuaram a mandar cargas contaminadas, batendo cabeça entre elas e entre diferentes órgãos do governo. Chegavam lotes contaminados na Europa o que fez com que os europeus, ao invés de inspecionarem apenas 20% das cargas, começassem a controlar 50% e depois 100% dos lotes brasileiros”, diz. “O aumento das rejeições brasileiras foi entre 2002 e 2003. A UE compra mais da metade do mercado global. Até que os brasileiros desistiram do mercado europeu”, diz.
A Bolívia, contudo, reagiu de outra forma e ganhou o mercado. “O comércio global pode ser uma faca de dois gumes: embora crie oportunidades econômicas, também expõe exportadores a níveis mais elevados de escrutínio em relação aos padrões trabalhistas, ambientais e sanitários”, afirma o estudo.
Coslovsky quis entender como a Bolívia, que tem menos recursos físicos, políticos, financeiros, econômicos que o Brasil se tornou campeã do mercado e chega a comprar castanha do Brasil para depois revender em território brasileiro. “Os produtores bolivianos de castanha prevaleceram porque conseguiram juntar forças para aprimorar suas práticas e instalações, apesar da desconfiança intensa e contínua entre eles”, diz o artigo. Coslovsky foi aos principais centros de produção da semente no mundo – os municípios de Cobija e Riberalta na Bolívia, e Belém, Rio Branco e Brasiléia no Brasil – para investigar o que estava acontecendo.
Diante da regra sanitária mais dura imposta pela UE, o governo boliviano passou a exigir que os exportadores apresentassem testes negativos de aflatoxina antes de receber a licença de exportação; o governo brasileiro, contudo, demorou a agir. O segundo passo das empresas produtoras em Riberalta foi reabilitar sua associação empresarial. O terceiro, equipar a entidade empresarial com um laboratório capacitado para verificar o teor de aflatoxinas nas castanhas.
Antes disso as empresas de Riberalta – de 15 a 20, muito competitivas entre si- tinham que mandar seus lotes para ser analisados em laboratório de La Paz, há quase mil quilômetros. No Brasil os laboratórios estavam em São Paulo, Santos e Belo Horizonte.
O laboratório da associação boliviana podia cobrir suas despesas cobrando US$ 105 por teste, enquanto o de La Paz cobrava US$ 380. “Mas decidiram cobrar US$ 300, mais barato que o de La Paz, mas garantindo recursos excedentes para fortalecer a entidade”, conta o pesquisador.
Com estes recursos contrataram dois consultores americanos da Universidade da Geórgia, estado americano conhecido pela forte produção de amendoim, que é vulnerável à aflatoxina. “O pessoal ensinou que não há como prevenir o fungo na floresta, que era a estratégia brasileira. É preciso remediar”, diz. Fizeram um sistema de produção adequado e treinaram os funcionários. Descobriram que com luz ultravioleta o fungo brilha, e a instalaram nas fábricas.
“Fizeram vários sistemas de inspeção redundantes para eliminar todas as castanhas suspeitas. Com isso conseguiram atender os critérios europeus”, diz Coslovsky, lembrando, contudo, que a luz ultravioleta pode ser prejudicial ao trabalhador e este foi um problema que a indústria brasileira enfrentou. “Ao tentar se resolver um problema sanitário, acaba-se batendo em um problema trabalhista.”
“Para enfrentar o problema, os bolivianos fortaleceram sua entidade, que busca melhores práticas, embora as empresas continuem sendo concorrentes. Criaram um sistema de incentivo seletivo, em que todos os agentes compram um serviço privado, mas contribuem de forma automática com um bem público”, diz.
A castanha, lembra o pesquisador, “é uma das grandes esperanças de se promover o desenvolvimento compatível com a floresta na Amazônia. É um dos produtos carro-chefe, uma locomotiva dessa discussão. Neste ‘paper’ discuto como a Bolívia fez para assumir a liderança global, para que a gente possa aprender com eles”.