“Quem não dispõe de coragem cívica e de energia moral não deve ingressar nos quadros da advocacia”, escreveu Sobral Pinto, gigante da advocacia brasileira, em carta escrita em janeiro de 1937 a sua irmã. Na ocasião, mostrava a ela os motivos de ter aceitado defender Luís Carlos Prestes, embora permanecesse discordando das ideias do líder comunista, “erradas e funestas, é verdade, mas adotadas e seguidas com rara sinceridade”.
Em outro momento da correspondência, Sobral oferece à irmã uma narrativa diversa da que lhe vem sendo mostrada sobre a figura de Prestes: “depois minha irmã, se você se mostra tão hostil a esse homem, cujo patrocínio, gratuito, foi agora confiado à minha modesta capacidade, é porque os jornais estabeleceram em torno dos seus propósitos uma campanha sistemática de desmoralização”. O dever contra-majoritário da advocacia é colocado em evidência por Sobral, representado pela coragem cívica em defender direitos e garantias fundamentais meio a uma atmosfera onde os que se prestam a tarefa desta natureza costumam ser perseguidos e hostilizados nos moldes da criminalização desonesta que, desde sempre, vemos em relação à defesa dos direitos humanos.
Ainda em janeiro de 1937, Sobral escreveu também para Targino Ribeiro, então presidente da OAB, ocasião em que afirmou: “quaisquer que sejam as minhas divergências, do comunismo materialista – e elas são profundas -, não me esquecerei, nesta delicada investidura que o Conselho da Ordem me impõe, que simbolizo, em face da coletividade brasileira exaltada e alarmada, A DEFESA”.
A nítida lição que se tira das missivas de Sobral é de que a defesa, junto com o devido processo legal, vale para todos e todas de forma indiscriminada, de forma que sua violação em uma situação específica representa um ataque à própria ordem constitucional. É a maturidade democrática e civilizacional que faz com que, na esteira de seus ensinamentos, defendamos estas garantias independentemente de quem tenha sofrido com o desrespeito à norma objetivamente prevista.
Infelizmente, as lições de Sobral, fiéis ao credo iluminista, parecem não ter sido assimiladas pela Ordem dos Advogados do Brasil no momento pelo qual passa o Brasil. Se a defesa e o devido processo legal são direitos inegociáveis, da mesma forma o são as prerrogativas da categoria, instrumento imprescindível não apenas para que advogadas e advogados possam exercer sua militância sem embaraços e constrangimentos característicos de regimes de exceção, mas para que seus clientes, cidadãos e cidadãs, possam ver no processo o que ele classicamente representa: um instrumento de garantia, defesa e proteção do réu, com as normas do jogo previamente estabelecidas para que se evite qualquer surto autoritário de juízes que, a exemplo de um caso recentemente ocorrido em um juizado especial da Bahia, se negam a dar prosseguimento a audiências pelo fato do advogado não estar usando gravata. A situação, por mais esdrúxula que seja, não é um caso isolado.
E o que se espera da entidade representativa da categoria quando desrespeitos às prerrogativas da advocacia passam a ocorrer de forma sistemática? No mínimo, uma postura enérgica e contundente contra magistrados que, em seus arroubos patrimonialistas, se enxergam como proprietários particulares de processos judiciais. Não foi esta expectativa, todavia, que vimos materializada no constrangedor discurso do presidente Cláudio Lamachia na cerimônia de posse do novo presidente do Tribunal Regional Federal da 4ª Região.
Embora a chamada operação Lava Jata tenha sua importância no sentido de demonstrar como o Estado se encontra sequestrado pelos interesses nada republicanos do mercado, o fundo moralista da qual se revestiu acabou por gerar uma conjuntura onde garantias constitucionais passaram a ser encaradas como obstáculos aos propósitos messiânicos de combater à corrupção ignorando o fato de se tratar de uma questão estrutural e sistêmica. Se empreiteiras e grandes conglomerados transnacionais estão há tempos ajoelhando nossa democracia, trata-se de um mal inerente à narrativa do próprio capitalismo global cujos efeitos, naturalmente, se refletem nos âmbitos regionais, conforme denunciam nomes como Gramsci e Bauman.
A docilidade da OAB em relação ao desrespeito a garantias constitucionais no contexto da Lava Jato assusta principalmente se levarmos em consideração que a questão das prerrogativas está religiosamente presente nas campanhas eleitorais tanto das seccionais quanto do próprio Conselho Federal. Em seu discurso, entretanto, Lamachia louva protocolarmente o Tribunal Regional da 4ª Região pela importância que adquiriu no cenário nacional como “corte revisora do principal processo judicial em curso do País, e seguramente um dos mais significativos da história brasileira”. Em seguida, emenda: “refiro, obviamente, à operação Lava Jato”.
É interessante tamanha condescendência, mesmo que protocolar, com a postura do TRF4 na Lava Jato se levarmos em consideração que foi esta mesma corte que chancelou os sucessivos desrespeitos aos ritos legais por parte do juiz Sérgio Moro ao considerar que não estaria obrigado a seguir as regras processuais ordinárias, uma vez que vem enfrentando uma situação inédita e excepcional. Legitimou, assim, que as normas legais deixassem de ter como fundamento sua fonte constitucional, qual seja, o processo legislativo do qual nascem as leis, e passassem a se basear nos códigos morais e particulares do magistrado, gerando um kafkaniano quadro de insegurança jurídica onde os profissionais da advocacia deixam de ter a obrigação profissional de conhecer a lei a passam a ter a necessidade de se apropriar do funcionamento das idiossincrasias morais e cognitivas dos juízes que estão à frente dos processos em que atuam.
Do colegiado, apenas o desembargador Rogério Favreto divergiu da consagração desse estado de exceção. Considerou, quanto à divulgação dos áudios das conversas de Lula e Dilma, que é no mínimo negligente um juiz tornar públicas conversas captadas de pessoas investigadas que, não suficiente, possuíam prerrogativa de foro. O interesse público e a tentativa de evitar obstrução à justiça, conforme também concluiu, não seriam razões aptas a permitir esse tipo de comportamento, afirmando que “o Poder Judiciário deve deferência aos dispositivos legais e constitucionais, sobretudo naquilo em que consagram direitos e garantias fundamentais”, tendo em vista que “sua não observância em domínio tão delicado como o Direito Penal, evocando a teoria do estado de exceção, pode ser temerária se feita por magistrado sem os mesmos compromissos democráticos”.
Em um dos vários momentos onde códigos morais sobrepuseram códigos legais, o juiz da operação Lava Jato, alvo das incontidas louvações da Lamachia, impediu que uma audiência judicial, pública como todo e qualquer ato processual, fosse registrada em vídeo pela defesa do ex-presidente Lula, por mais que o Código de Processo Civil, em seu artigo 367, §6º, permita a gravação das audiências por qualquer das partes independente de autorização judicial. Sérgio Moro e sua intimista legislação particular, entretanto, viram razoabilidade em negar a aplicação deste dispositivo, ainda que oriundo da norma processual cível, e não penal.
Inúmeras foram as situações onde o juiz paranaense passou por cima das prerrogativas da advocacia, ignorou normas legais e se engajou em desentendimentos com advogados que, em tese, são representados pelo presidente Lamachia e a instituição a qual preside. Malgrado o Código de Processo Penal, em seu artigo 213, preveja que o juiz não permitirá que a testemunha manifeste suas apreciações pessoais, salvo quando inseparáveis da narrativa do fato, isto não impediu que Moro não só permitisse como ele próprio fizesse indagações nas quais solicitou as opiniões de depoentes, chegando a cassar a palavra da defesa nas vezes em que se insurgiu contra tal comportamento. Em outra ocasião onde o magistrado procurou novamente extrair opiniões da testemunha, respondeu aos protestos da defesa com uma provocação de bar: “faça concurso para juiz e assuma a condução da audiência, mas, quem manda na audiência é o juiz”. Recentemente, Moro indeferiu a pergunta de um dos advogados antes mesmo de ouvi-la.
A lista de veleidades é longa. A maioria com a condescendência não só do TRF da 4ª Região, mas também da própria OAB. Das poucas exceções que contaram com alguma reação, estão a reforma da ordem obrigava, ao completo arrepio da lei, que Lula comparecesse pessoalmente aos depoimentos de todas as 87 testemunhas que arrolou e a resposta aos grampos no telefone do advogado Roberto Teixeira e no telefone fixo do escritório que patrocina a defesa do ex-presidente, tendo acesso às conversas de vinte cinco profissionais com pelo menos 300 clientes. Por mais dócil que a OAB estivesse – e ainda esteja sendo – aos constantes desrespeitos às prerrogativas da advocacia, neste último caso em particular esticou-se o nó de um jeito que o silêncio poderia se tornar o prenúncio de uma desmoralização ainda maior diante da categoria, forçando que a Ordem, excepcionalmente, se manifestasse sobre o ocorrido.
Lamachia, ainda totalmente despregado da realidade, classificou em seu discurso a “justiça” como o “único antídoto” capaz de debelar a crise política “sem messianismos de qualquer espécie, respeitando princípios constitucionais muito caros para todos nós, como o devido processo legal, a ampla defesa e o direito ao contraditório, exercido sim na plenitude pela advocacia em nome da cidadania”. Logo em seguida, vaticinou, surpreendentemente, que “sem isso, não haverá justiça, e sim justiçamento”. Cego ao justiçamento que as brutais violações destes princípios constitucionais já vêm causando na esteira das delações premiadas e do paiol de arbitrariedades da dupla Moro-Dallagnol, Lamachia chegou a falar a sandice de que “moral não tem ideologia, moral tem princípios”, rasgando de vez todo o acúmulo epistemológico dos pré-socráticos até os dias atuais. “Ou as regras valem para todos ou não valem para ninguém. Como num jogo de futebol, o juiz não joga, garante o jogo. Se houver parcialidade, descumprimento das regras, o jogo é ilegítimo”, bradou diante da mesma corte que deu a Sérgio Moro o cheque em branco de poder continuar presidindo os processos da Lava Jato como um monarca absolutista.
O art. 44, inciso I do Estatuto da Advocacia afirma que OAB tem por finalidade a defesa da Constituição, da ordem jurídica, do Estado democrático de direito, dos direitos humanos e da justiça social, pugnando pela boa aplicação das leis, pela rápida administração da justiça e pelo aperfeiçoamento da cultura e das instituições jurídicas. A mansidão acovardada e o cinismo institucional diante da agenda moralista que vem colocando o respeito a garantias constitucionais e o combate à corrupção em campos opostos fizeram com que a OAB não apenas fechasse os olhos para a verdadeira humilhação que se tornou o exercício da advocacia, como bem concluiu Lenio Streck, mas também postulasse, de forma atabalhoada, uma cadeira de destaque meio aos coveiros da democracia. “Sem qualquer favoritismo, digo que este Tribunal Regional Federal da 4ª Região tem dado testemunho de nova mentalidade que inaugura uma nova era na vida institucional no País. Não tenho dúvida, de que prosseguirá neste rumo”. Neste ponto, infelizmente, Lamachia está mais do que certo.
Gustavo Henrique Freire Barbosa é Advogado e Professor.
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