O vídeo em que um homem mais velho pede uma menina de 15 anos em casamento gerou indignação nas redes sociais na última semana. Nele, o homem, um policial militar de Pernambuco, aparece fardado, com um buquê de rosas e alianças, fazendo o pedido à adolescente, na porta da escola onde ela estuda. A atitude acendeu alerta sobre casamento infantil, problema que persiste no Brasil e merece destaque no contexto do Dia das Crianças, celebrado nesta quinta-feira, 12 de outubro.
Segundo a Girls not Brides – organização não governamental internacional com a missão de acabar com o casamento infantil em todo o mundo –, mais de 2,2 milhões de menores de idade são casadas no Brasil ou vivem em regime de união estável – cerca de 36% da população feminina brasileira menor de 18 anos. O Brasil é o quinto país do mundo em números absolutos de casamento infantil.
Desde 2019, o país permite o casamento de menores de 18 anos a partir da chamada “idade núbil”, estabelecida a partir dos 16 anos. A proibição passou a valer a partir da Lei 13.811/2019. Para a formalização, no entanto, é necessária a autorização legal dos pais ou responsáveis pelo menor de idade, conforme o Código Civil.
“É desconfortável observar a naturalização do matrimônio entre adolescentes em nosso país. Ainda pior é a ausência de preocupação da legislação e das políticas públicas em lidar com a união estável constituída por tal público, a qual, por ser informalmente vivenciada, escapa ao controle do Estado”, analisa a advogada Lígia Ziggiotti, membro do Instituto Brasileiro de Direito de Família – IBDFAM e presidente da Associação Nacional de Juristas pelos Direitos Humanos LGBTI – ANAJUDH.
Os dados do censo demográfico do Brasil de 2010, realizado pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística – IBGE, ajudam a compreender a realidade brasileira. Conforme o levantamento, o número de uniões estáveis, civis ou religiosas envolvendo meninos chegava, há 13 anos, à marca de 22.849 (10 a 14 anos) e 78.997 (15 a 17 anos). Já o número de casamentos envolvendo meninas de 10 a 14 anos chegava a 65.709, e as de 15 a 17 anos, 488.381.
“Percebe-se que o Brasil tem saído da rota de discussão da conjugalidade infanto-juvenil por se considerarem as uniões aqui estabelecidas distantes da realidade de casamentos forçados, os quais encontram terreno em outros países. Entretanto, este é um problema existente que não vai se resolver apenas com a proibição de casamentos de crianças e de adolescentes. Ao menos, a discussão sobre os efeitos das uniões estáveis infantis e juvenis deve ser captada por um radar que se ocupa de direitos humanos e fundamentais”, analisa.
Pesquisas indicam causas e efeitos da conjugalidade infantil
As causas e os efeitos da conjugalidade infantil são bastante exploradas por pesquisas que tentam entender o que está por trás desse cenário. Todas elas, segundo Lígia, indicam violação de direitos, principalmente de meninas.
“Em pesquisa realizada pelo Instituto Promundo, de 2015, restou evidente que, dentre os fatores que influenciam o estabelecimento destas uniões constam a gravidez indesejada, que atrita com o moralismo familiar e social; o controle da sexualidade das meninas por seus familiares; o anseio de alguma segurança financeira; a perspectiva de linha de fuga do lar de origem, para as meninas, especialmente quando há violência intrafamiliar; e o desejo masculino de estabelecerem relações com meninas mais jovens”, lista.
Em relação às consequências, a principal delas é a evasão escolar. “Com isso, mitigam-se as chances diante do mercado laboral e há risco de precoce ingresso no registro de família parental”, afirma.
Para a especialista, observar a situação da conjugalidade infantil apenas pelas potencialidades preventivas das famílias não é suficiente. Ela defende que há necessidade de compreender que se trata de um problema relativo a políticas públicas e, portanto, deve haver envolvimento do Estado.
“Precariedade da educação pública, ausência de horizonte profissional, fetichização da infância e da juventude femininas, miserabilidade familiar e a ausência de discussão sobre direitos sexuais e reprodutivos com a juventude exemplificam tópicos relacionados à conjugalidade entre crianças e adolescentes que necessitamos ter em mente quando desejamos, efetivamente, discutir, com seriedade, a temática”, afirma.
União estável não afasta estupro de vulnerável
Recentemente, a Sexta Turma do Superior Tribunal de Justiça – STJ deu provimento ao recurso especial ajuizado pelo Ministério Público do Mato Grosso – MPMT para condenar um homem por estupro de vulnerável praticado quando tinha 18 anos contra uma menina de 12. O Colegiado entende que o fato de a vítima menor de idade viver em união estável com o réu reforça o contexto de sexualização precoce e não serve para afastar a ocorrência do crime.
A relação entre os dois foi desaprovada pela família e denunciada à polícia pela mãe da vítima. A condenação foi afastada pelas instâncias ordinárias, que se atentaram às especificidades do caso concreto para afastar a tipicidade material da conduta.
Consoante o processo, a relação entre agressor e vítima não era intimidatória e violenta, nem inserida em contexto muito incompatível com o que se poderia exigir da adolescente. Do namoro surgiu uma união estável, uma vez que o casal passou a morar com a família do réu.
A rigor, nenhum desses elementos serviria para afastar a ocorrência do estupro de vulnerável, conforme tese firmada pelo STJ e consolidada na Súmula 593. Foi esse motivo que levou a ministra Laurita Vaz a, monocraticamente, dar provimento ao recurso para condenar o réu.
“O fato de a vítima ter posteriormente passado a viver em união estável com o agravante tão somente reforça o contexto de sexualização precoce no qual se encontra inserida, sendo o seu consentimento infantil incapaz de afastar a tipicidade da conduta”, apontou a relatora.
Lígia Ziggiotti sustenta uma posição crítica diante da decisão. “Embora ela revele atenção do STJ à problemática da conjugalidade infantil, os caminhos da criminalização costumam deixar excessivas reticências sobre a qualidade da resposta jurídica para um dado problema social”, afirma.
E defende: “A verdadeira inovação consiste em um Estado que conceda providências ligadas à educação em gênero, e sexualidade, ligadas à criação de futuros possíveis para a infância e para a juventude, efetivamente emancipado da violência, da opressão e da miserabilidade”.