OEstadoacre reproduz o artigo de Rafa Santos do Conjur.
A maioria dos brasileiros não confia na polícia, conforme o resultado de uma pesquisa feita pelo PoderData, e publicada pelo site Poder360, com opiniões colhidas entre os dias 27 e 29 de janeiro deste ano. Entre os entrevistados, 19% dizem não confiar na polícia, 51% confiam pouco e apenas 22% afirmam confiar muito no trabalho dos agentes de segurança pública — 8% não souberam responder.
A crise de confiança no trabalho das polícias pode ser encarada como uma construção coletiva que envolve pilares como ineficiência, abusos e o discurso populista de que “bandido bom é bandido morto”, mantra da extrema-direita que faz eco em parte da imprensa. E, na esteira da falta de credibilidade da polícia, ganha corpo a discussão em torno do controle externo da atividade policial — função que deve ser exercida pelo Ministério Público, conforme previsão constitucional.
O advogado e professor titular do Programa de Pós-Graduação, Mestrado e Doutorado em Ciências Criminais da PUC-RS Aury Lopes Jr. explica que, apesar de a Constituição de 1988 determinar em seu artigo 129 que o MP exercerá o controle externo da atividade policial, essa é ainda uma questão tormentosa e cinzenta no Brasil.
“Nem a Lei Complementar 75/1993, nem as resoluções do CNMP (Conselho Nacional do Ministério Público) são suficientes ou dotadas de plena eficácia. Temos um desenho de polícia judiciária que não está subordinada, funcionalmente, ao Poder Judiciário ou ao Ministério Público, o que não significa necessariamente algo ruim. Existem bons argumentos a favor deste desenho e outros contrários. Nesse cenário, o tal controle externo também é um conceito vago e indeterminado, não facilmente definível, especialmente se considerarmos que controle externo não é ingerência.”
Apesar das dificuldades, é notório o esforço institucional do MP para cumprir sua função constitucional. Em dezembro do ano passado, o CNMP editou três resoluções sobre o controle externo da polícia: a Resolução 277/2023 trata das atribuições do MP na tutela coletiva de políticas públicas de execução penal e na atividade de fiscalização de estabelecimentos penais; a Resolução 278/2023, por sua vez, aborda o papel da instituição na tutela coletiva da segurança pública; e a Resolução 279/2023, o exercício do controle externo da atividade policial.
No mês seguinte, porém, a Associação dos Delegados de Polícia do Brasil (Adepol/Brasil) ajuizou ação direta de inconstitucionalidade no Supremo Tribunal Federal contra a Resolução 279/2023. A entidade afirma que a norma viola diversas regras constitucionais e alega falta de competência do CNMP para regulamentar a matéria. A Adepol sustenta ainda que a resolução impõe uma subordinação hierárquica e administrativa das instituições policiais ao Ministério Público.
Para a entidade, o objetivo do MP é impor uma relação de subordinação hierárquica ou administrativa das instituições policiais ao MP. O ponto de maior discordância é o artigo 5°, inciso III, da resolução, que confere à instituição o poder de presidir e conduzir inquéritos policiais e procedimentos administrativos de investigação criminal.
Desafios institucionais
Antonio Henrique Graciano Suxberger, promotor de Justiça do Distrito Federal e professor titular do mestrado e do doutorado em Direito do Centro Universitário de Brasília (CEUB), diz que a dificuldade do MP de exercer o controle externo da atividade policial deriva da modelagem constitucional brasileira.
“A dificuldade se encontra na diferenciação entre o que seja um controle interno de natureza correcional, que a própria polícia precisa exercer, e o que seja esse controle externo, que é a função do Ministério Público.”
O promotor afirma que o MP deve se atentar à qualidade das investigações, ao enfrentamento da letalidade policial e à defesa dos direitos humanos. “Essas resoluções do CNMP representam um esforço do Ministério Público para construir uma institucionalidade do controle externo que dialogue com as demandas e os desafios na fiscalização das políticas de segurança pública.”
Em um país heterogêneo como o Brasil, a importância de haver parâmetros claros para que o MP exerça o controle externo da atividade policial ganha ainda mais peso, segundo Suxberger. Ele afirma que o que o CNMP implementou com as recentes resoluções foi um desenho do que se espera da instituição no controle da polícia, considerando as particularidades regionais.
A também promotora de Justiça Fabrícia Barbosa de Oliveira exerce essa atividade no Piauí. Ela explica que o controle não se restringe a corrigir violações por parte da polícia, mas também fiscalizar as condições de trabalho oferecidas aos agentes de segurança. “O controle externo não significa uma relação de subordinação, mas de parceria com as policiais para atuar na garantia desse direito constitucional que é a segurança pública.”
De acordo com Fabrícia, essa atuação vai desde verificar se o efetivo é suficiente até conferir a duração dos inquéritos policiais.
“É preciso ter uma colaboração próxima com as polícias, já que elas são responsáveis por subsidiar o Ministério Público de provas na propositura de uma ação penal. Então temos uma atuação muito forte na fiscalização dos institutos de perícia, cadeia de custódia e na destinação de drogas e armas apreendidas pelas forças de segurança.”
Cobranças e responsabilidades
O combate à criminalidade no Brasil é marcado por excessos das forças policiais, o que acaba resultando em cobranças para que o Ministério Público exerça o controle da atividade policial de modo mais efetivo. E também em maior responsabilidade para o MP. Um dos exemplos recentes — e contundentes — disso veio do Supremo Tribunal Federal. Ao conceder liminar para proibir ações policiais nas favelas do Rio de Janeiro durante a pandemia da Covid-19, em junho de 2020, o ministro Edson Fachin determinou que as operações ocorressem de modo absolutamente excepcional e condicionadas à prévia comunicação ao Ministério Público do Rio de Janeiro.
Em agosto do mesmo ano, o Plenário do STF confirmou a decisão de Fachin por maioria. Apesar de divergir do relator, o ministro Alexandre de Moraes, em seu voto, reiterou a responsabilidade do MP-RJ no controle externo das forças de segurança. Ele sugeriu uma série de imposições ao órgão, como instaurar procedimentos investigatórios autônomos nos casos de mortes e demais violações a direitos fundamentais e designar um promotor para atuar no controle externo das atividades policiais em regime de plantão.
Apesar dessa decisão do STF, a polícia do Rio promoveu no ano seguinte uma operação que resultou na morte de 28 pessoas na Favela do Jacarezinho, violando diversas determinações do Supremo, conforme apontado por especialistas ouvidos pela revista eletrônica Consultor Jurídico na ocasião.
E as cobranças vão além das fronteiras brasileiras. O país já foi condenado algumas vezes pela Corte Interamericana de Direitos Humanos por abuso policial. O caso mais emblemático talvez seja o da chacina da Favela Nova Brasília, no Complexo do Alemão, também no Rio.
O incidente ocorreu no dia 18 de outubro de 1994 e resultou na morte de 13 pessoas — entre elas quatro crianças —, além da acusação de que três mulheres (duas menores de idade) foram torturadas e sofreram violência sexual de agentes estatais. Em maio de 1995, houve uma nova ação da polícia na mesma favela, de novo com 13 mortos.
O Brasil foi condenado pela Corte IDH e a sentença estabeleceu 17 medidas de reparação às vítimas, além de determinar o combate à letalidade policial. No entanto, poucas das determinações foram adotadas pelo Estado brasileiro.
Suxberger destaca que o caso da Favela Nova Brasília foi importante porque o Brasil foi condenado a fazer com que as investigações envolvendo agentes do Estado não sejam conduzidas pela instituição à qual pertence o agente suspeito.
Resoluções na prática
A Resolução 279 do CNMP embasou uma iniciativa recente do Ministério Público de São Paulo chamada Projeto Especial — Operação Verão, que consiste na criação de uma equipe para “acompanhar a situação emergencial na Baixada Santista e assegurar a efetividade do controle externo da atividade policial”.
Os índices de letalidade da Polícia Militar na Baixada Santista cresceram de forma exponencial com duas operações recentes que vitimaram ao menos 50 pessoas.
Ao implementar o projeto, o ex-procurador-geral de Justiça de São Paulo, Mário Sarrubbo, afirmou que o alto número de mortes justificava a adoção da medida, que vale por seis meses e pode ser prorrogada por igual período. Sarrubo se aposentou do MP-SP para assumir o comando da Secretaria Nacional de Segurança Pública no Ministério da Justiça e Segurança Pública.
Apesar da alta letalidade, o secretário de Segurança Pública do estado de São Paulo, Guilherme Muraro Derrite, disse que não há prazo para o encerramento da ação policial na Baixada Santista.
O ouvidor da PM paulista, Cláudio Aparecido da Silva, tem denunciado violações aos direitos humanos no trabalho dos agentes no litoral e reiterado que essa operação é a mais letal da história de São Paulo. Por causa de suas críticas, foi ameaçado de morte.
“Não podemos tapar o sol com a peneira e fingir que nada está acontecendo, demorou pra matar esses vagabundos, e que se estiver apoiando bandido igual esse negro maldito e esse ouvidor das polícias, tem que morrer também”, dizia uma das mensagens que ele recebeu de um número anônimo em seu telefone celular.
Após as denúncias de que policiais forçavam profissionais do Serviço de Atendimento Móvel de Urgência (Samu) a levar pessoas mortas em confronto com a PM para hospitais — e, assim, evitar a perícia —, o MP de São Paulo decidiu abrir uma investigação. Os promotores vão analisar prontuários médicos e ouvir socorristas para saber as circunstâncias em que o transporte desses corpos ocorreu.
Jurisprudência do STJ
Muitos dos avanços do Ministério Público no controle das atividades policiais acabam sendo judicializados. O Superior Tribunal de Justiça já julgou algumas controvérsias e, até o momento, a corte tem sido firme ao privilegiar as prerrogativas do órgão.
Em 2020, a 2ª Turma do STJ, no julgamento do REsp 1.848.640, reconheceu o direito do MP de ingressar em estabelecimentos policiais. Na ocasião, o relator da matéria, ministro Herman Benjamin, entendeu que o artigo 9º, incisos I e II, da Lei Complementar 75/1993 autoriza expressamente o acesso da instituição a estabelecimentos policiais e prisionais.
No caso concreto, um membro do MP havia sido impedido de entrar em salas onde eram feitas interceptações telefônicas pela Polícia Federal. “Controle externo não significa ingerência. A separação dos poderes parece ser ofendida quanto até mesmo a entrada dos membros do MPF em determinados lugares é impedida pela Polícia Federal, pois o aludido princípio constitucional se consubstancia mediante a clássica ideia de freios e contrapesos”, afirmou o relator.
No julgamento do REsp 1.126.468, a 1ª Turma do STJ reiterou o poder do Ministério Público de requisitar informações que considere relevantes para o controle externo. O tribunal também já se pronunciou no sentido de garantir ao MP o acesso às ordens de missão policial (REsp 1.365.910) e à totalidade dos relatórios de inteligência da Polícia Federal (REsp 1.439.193).
Desafio hercúleo
O ex-procurador de Justiça do MP do Rio Grande do Sul, advogado e parecerista Lenio Streck entende que o controle da atividade policial pelo MP é uma tarefa hercúlea. Ele diz que, quando a Constituição de 1988 foi promulgada, foi criado um controle externo que ninguém até hoje sabe o que é.
“Um país patrimonialista-corporativista como o Brasil não vai permitir a efetivação desse controle, mesmo décadas depois. Na medida em que a força política das polícias aumentou nos últimos anos — e veja que hoje há apenas um parlamentar promotor, contra dezenas de policiais, porque houve a vedação aos membros do MP de exercer a atividade política —, as prerrogativas e blindagens da polícia foram sendo incorporadas à legislação.”
Streck cita como exemplo da influência política das polícias a aprovação da Lei Orgânica das Polícias (Lei 14.751), que estabelece até mesmo independência funcional e o livre convencimento para policiais — algo único no mundo.
“O constituinte não pretendeu que o MP comandasse as policiais, é claro. Mas queria uma contenção. Saímos de uma ditadura. Desde então, leis orgânicas e resoluções tentam regulamentar. O resultado é pífio. Tem ainda a questão dos policiais militares, outro imbróglio brasileiro que é uma herança dos regimes de força. O dispositivo constitucional caminha para o mesmo destino do art. 52, X, que mandava o STF remeter ao Congresso as decisões de controle difuso de constitucionalidade. Isso morreu. O quadro atual aponta para uma autonomização da atividade policial e o MP ficar ‘comendo poeira’.”
O advogado afirma que casos recentes de abusos cometidos por policiais no Rio de Janeiro e em São Paulo demonstram a necessidade do controle externo, mas, na prática, o que se tem visto é o crescimento das atribuições até mesmo das Guardas Municipais e da Polícia Penal.
“O que teríamos de ver é o que melhorou a segurança nas últimas décadas — e nisso não faço juízo de valor. Também necessitamos saber do que precisamos, realmente, em termos de controles, deixando de fora o corporativismo. Mas como fazer uma anamnese do sistema? Até isso parece difícil.”